sexta-feira, 10 de julho de 2009

Lavoura Arcaica, o filme

Em 2001, quando o filme ainda não havia estreado no Brasil, nem ganho os prêmios que viria a conquistar depois, escrevi a resenha que disponibilizo agora. Ela seria publicada junto com a entrevista do diretor, que saiu na Gazeta do Povo, mas acabou não saindo. Na ocasião tentei ingenuamente vendê-la à revista Veja, junto com a entrevista. Embora tenham se passado já oito anos, ela ainda faz algum sentido.


Uma obra-prima da cinematografia nacional


Não é fácil escrever sobre Lavoura Arcaica, primeiro longa metragem de Luiz Fernando Carvalho. Nenhum filme brasileiro recente merece mais ser chamado de obra-prima. Mas isso não significa que seja fácil assistir ao filme. Como também não é fácil ler o romance homônimo de Raduan Nassar, agora reinventado, mais do que adaptado, para a tela.

Já na primeira cena, em que André está deitado no chão de um quarto de pensão, nosso olhar tem que se conformar ao olhar seccionador da câmera. Não vemos o quarto todo, não sabemos onde fica a porta, a janela, as paredes, sequer vemos o personagem inteiro. A câmera parte o corpo de André em pedaços: pés, dedos crispados, virilha, meio rosto, pés novamente.

Os pés de André, descalços, serão uma recorrência durante todo o filme, metáfora da ligação telúrica do personagem com os veios subterrâneos de seus desejos mais íntimos, entre os quais o amor pela irmã Ana. É através dos pés, permanentemente enfiados na terra, entre as folhas das árvores, que André se entrega às correntes secretas que vão dar no êxtase.

A câmera só abre quando Pedro, o irmão, escancara a janela, por onde entra uma luz branca, que cega o espectador, tomando toda a tela com aquela que será a primeira de uma série de abstrações poéticas do filme, ligadas sempre à infância de André. A partir desse momento estará construído o núcleo do contraponto entre as cenas do quarto de pensão, de um lado, e da infância e da adolescência, do outro. E será assim até quase o final, segundo a complexa trama temporal do filme. À câmera absolutamente consciente do corpo, com suas tomadas fechadas, contrapõem-se os planos abertos, às vezes generosamente, iluminados por uma luz que transpassa tudo, cortinas, folhas, nuvens. À cor da madeira, ao tom austero, ao sépia da lei contrapõe-se a luminosidade perturbadora das cenas cheias de lirismo e pulsão sexual.

Essa primeira cena dá também o tom lento do andamento do filme, necessariamente lento, caligráfico. As cenas vão se desenrolando como a escrita caligráfica, palavra a palavra. Assim vamos vendo ser construído um todo sinfônico, harmonicamente costurado, feito de lembranças, desejos, normas, êxtases proibidos.

Mas essa lentidão não deixa as coisas mais fáceis. Ao contrário, ela está tecida com tantas referências sutis, sugestões, entrelinhas, que a primeira impressão que se tem é que o filme precisaria ser visto e revisto, e revisto ainda. Como alguns livros precisam ser lidos e relidos. O filme tem 171 minutos, é admirável que tanto tenha cabido em tão pouco tempo, que tanta beleza e tanta complexidade estejam lá, indissociáveis na trama de imagens, sons e palavras.

O que surpreende ainda é que essas qualidades que são as do livro de Raduan Nassar tenham encontrado sua contraparte na linguagem cinematográfica. Assim, mais do que um filme baseado num livro, o que se tem aqui é a raridade do encontro de duas linguagens, a cinematográfica e a literária, afinadas pelo mesmo diapasão. Como duas irmãs, diferentes mas unidas pelo mesmo sangue. Há poucos exemplos de uma simbiose como essa na cinematografia nacional. Vidas Secas, de Graciliano e Nelson Pereira dos Santos é um deles. Guerra Conjugal, de Dalton Trevisan e Joaquim Pedro de Andrade é outro. E só.

O tom 'literário' das falas do pai e de André é um exemplo dessa simbiose - que não ocorreu no filme Um copo de cólera, inspirado também num livro de Raduan Nassar. Apesar de teatral ele soa em perfeito acordo com os personagens, fazendo fluir naturalmente as cenas. Se em alguns momentos fica difícil acompanhar todo o texto, isso se deve tanto à carga poética como à densidade de alguns diálogos, às vezes densidade filosófica mesmo.

É com extrema naturalidade que os personagens dizem o que parecia impronunciável em voz alta. Certamente isso se deve ao alto grau e envolvimento dos atores com o projeto todo do filme. Mas também a uma direção que integrou habilmente essas falas a um contexto propriamente cinematográfico, do qual não podem ser excluídos a fotografia, de Walter Carvalho, a trilha sonora, do grupo Uakti, e a montagem. Além de uma série de recursos técnicos de filmagem.

O diálogo entre pai e filho, depois que André é trazido de volta para casa pelo irmão Pedro, talvez seja o momento em que a temática do filme se revela mais explicitamente: de um lado a ânsia rebelde pela liberdade, de outro a reverência à tradição, especificamente à tradição cristã. Do confronto dessas duas visões, a incomunicabilidade humana. Por mais que ambos se esforcem, eles não chegam a acordo algum. Num nível mais íntimo, não há mesmo compreensão possível entre as pessoas. Embora essa impossibilidade mais incite ao confronto do que o abrande.

Assim, contrói-se com essa cena o avesso da parábola do filho pródigo. O filho desgarrado volta para casa, mas não se curva à verdade da lei, embora finalmente se curve ao pai, talvez para aplacar-lhe a cólera e a dor. O filho, não deve haver dúvida, fundou sua própria igreja, mesmo que ela esteja ligada por corredores estreitos à casa do pai. E aqui o filme ganha, ainda que metaforicamente, uma dimensão de crítica política. Crítica à voz do poder instituído, que subjuga os Andrés a uma verdade única, oprimindo assim os excluídos da ordem social.

Raul Cortez, como o pai, e Selton de Melo, como o filho, estão irretocáveis nessa cena, provavelmente a mais densa tanto do ponto de vista dramatúrgico como no uso da linguagem. E aí está outro trunfo do filme, unir densidade dramática e alta voltagem poética sem cair nos extremos do folhetim nem na ilegibilidade. Como conseqüência o filme elege um público distante tanto dos devoradores inconscientes de telenovelas como o grupo eleito dos decifradores.

Mas remarcável é o desempenho de todos os atores, certamente porque eles são os responsáveis por muitas das soluções do filme, do qual eles são co-autores, segundo as palavras do próprio diretor. Uma marca da intensidade com que eles desempenham seu papel está na personagem Ana, interpretada com exuberância pela curitibana Simone Spoladori.

Ana não pronuncia uma palavra sequer durante todo o filme. No entanto, essa mudez a coloca no centro mesmo da trama, como o polo oposto à rigidez paterna. Ana representa a floração do que André leva dentro, no obscuro da alma. É ela o ponto por onde o amor aflora mais impetuosamente à terra, límpido. Por isso sua mudez potencializa tanto a última cena, em que ela dança em êxtase com os adereços das prostitutas que André freqüentou na adolescência, e que guardava numa caixa de madeira.

Lavoura Arcaica é um filme belo, denso, nutridor. Um filme que nos devolve a nós, como se há muito nos tivéssemos perdido. Mas sobretudo que marca o vigor do cinema nacional, o vigor de nosso país. Perto de tanta generosidade e beleza pouco importa se Lavoura às vezes soa difícil.

Um comentário:

Anônimo disse...

pertinente a lembrança do filme, pra lembrar do diretor.

recentemente postei um comentário (em um site do qual não me lembro o nome...) sobre a decisão da Rede Globo de suspender temporariamente o Projeto Quadrante - que este ano faria sua terceira adaptação de obras da literatura brasileira e cujo diretor é justamente Luiz Fernando Carvalho. Eu dizia que seria gratificante ver LFC voltando à grande tela, poupando-se de ter que se jusficar sobre fracassos de audiência (desde A pedra do reino...), sobre o hermetismo de sua linguagem, etc. e tal.

essa mídia é cruel, tal como o sistema que lhe mantém: o que lhe interessa são números, índices, todos de preferência inflacionados, para ressarcir os gastos com as produções.

o elogio à sensibilidade do telespectador, o regalo à sua alma embotada de pastelões saturados de mesmice e humor degradante, isso infelizmente não vem ao caso.
muito bem, uma vez interrompido o projeto televisivo, ficaríamos gratos por ver novamente essa criatura de tanta inspiração voltar-se a um projeto cinematográfico, "capitular" da tv por um tempo, que os prêmios e o justo reconhecimento estão à sua espera.