quarta-feira, 12 de outubro de 2011

O segredo de cada um

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Em Prisão Perpétua, do argentino Ricardo Piglia, há dois contos dedicados a dois escritores conterrâneos: Roberto Arlt e Macedonio Fernandez. No conto intitulado Notas sobre Macedonio Fernandez, Piglia cita uma série de notas supostamente atribuídas ao autor de Adriana Buenos Aires. Entre elas uma me chamou a atenção:

                   Nada. O artista está só, abandonado ao silêncio e ao
         ridículo. Tem a responsabilidade de si mesmo. Começa suas
         coisas e as leva a termo. Segue uma voz interna que
         ninguém ouve.
        
         Fiquei surpreso, há algum tempo, quando em uma entrevista a José Castello, no Estadão, Lygia Fagundes Telles formulou a mesma idéia, a sua maneira:

Há uma frase de André Malraux da qual eu gosto muito: “A verdade sobre o homem é, antes de tudo, aquilo que ele mantém escondido”, ele diz. Essa verdade que você está buscando em mim agora está escondida. É o meu segredo e na posse desse segredo reside, talvez, a minha força. Mas essa verdade escondida, eu tento passá-la pela escrita. Na hora em que escrevo, eu a revelo.     

Surpreso não por ver que a voz interna que ninguém ouve, do escritor argentino, era o mesmo que o segredo, da escritora brasileira, eco, por sua vez, daquilo que ele (o homem) mantém escondido, do francês Malraux.
Apesar de belas, e sem dúvida sinceras, ambas as afirmações confirmam a imagem romântica do artista: só, abandonado a si mesmo, ignorado e ridicularizado, possuidor de um segredo íntimo - portanto do poder da revelação. Talvez tudo isso seja mesmo verdade, mas é difícil engolir a solenidade que envolve essas palavras. Parece que somos crianças ouvindo uma conversa de adultos, morrendo de medo de opinar, ou fazer uma graça, e levar um cascudo ou um chute na bunda.
Como incluir entre os eleitos minha empregada, o motorista de taxi, o balconista. Sim, porque se só adquirimos uma voz através da escrita, da pintura, da música, etc, então o resto dos mortais, entre os quais modestamente me incluo, estão condenados à mudez ou à voz de falsete. 
Prefiro acreditar que há infinitas formas, sobretudo mais alegres, menos obsessivas, de expor-se o segredo de cada um; que embora sós, já por uma conjuntura física, podemos nos mostrar ao outro, ainda que momentaneamente e sem arte. Este não é um privilégio dos santos, dos artistas e dos loucos.
Mesmo porque, por um paradoxo, essa voz interior que ninguém ouve talvez esteja mais viva ainda, por exemplo, num homem mudo, quieto no seu canto, aparentemente alheio à grande roda do destino.
É exatamente este o caso de Bernardo da Mata, ex-empregado na fazenda do poeta Manoel de Barros, que hoje praticamente não fala, grunhe, embora no passado ficasse horas diante de um rio, conversando com a água corrente e com os ventos. Num número antigo da revista Bravo! ficamos conhecendo um pouco da história desse que se transformou no alter ego do poeta desde 1985, quando foi publicado o Livro de Pré-Coisas.
Cito algumas linhas:

Sobre seu velho amigo, Manoel de Barros costuma dizer que nunca viu pureza igual. É como se ele encarnasse a loucura e a infância que o poeta quer alcançar por meio da linguagem poética.

         Se por um lado o artista é visto como uma anomalia da sociedade, ou pelo menos como um ingênuo inconseqüente, um inútil, que em algumas circunstâncias pode até ser divertido e economicamente viável, por outro quase sempre ele se vê como um eleito, um vocacionado, como as antenas da raça, por isso superior aos outros.
E tudo por causa da escrita, como se a vida morasse nela, inevitavelmente. Como se o não leitor, pobre dele, estivesse condenado ao desabrigo, não eu e você.


Texto originalmente publicado na Gazeta do Povo

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