segunda-feira, 18 de abril de 2016

PARADOXO


O que se deu ontem, na câmara dos deputados, em Brasília, repercutido nas ruas de várias cidades brasileiras, infelizmente não deixa dúvidas: apesar de nossa imensurável riqueza afetiva, de uma subjetividade sempre pronta a florescer nas mais adversas circunstâncias, o Brasil é um país a um só tempo barbaramente ingênuo e maquiavelicamente bárbaro. Na contramão de uma maturidade artística exuberante, a política brasileira, com todo o seu corolário social, minimamente satisfeito, parece nunca amadurecer de fato.

Difícil imaginar um paradoxo mais extremado.

De um lado a silenciosa delicadeza construtiva de Volpe, de outro os barulhentos golpes a machado do preconceito, do ódio, da vingança; de um lado a ‘lama estelar’ da alma metafísica do ser de Iberê, de outro o raso salobro do raciocínio cego, que não progride um centímetro além de sua sombra.

De um lado as filigranas de harmonia de Hamilton de Holanda, de Guinga, de Mehmari, de outro o discurso tosco, desarticulado e falastrão; de um lado a lâmina de doçura da voz de Virgínia Rodrigues, de outro o azedo amarento da língua mordendo a própria incompetência.

De um lado mundos de ternura e aceitação de Bandeira, Quintana, Augusto Frederico Schmidt, Adélia Prado, de outro a voracidade grosseira dos urubus verde-amarelos do capital, da usura e do lucro desmedidos.

De um lado a imaginação sertaneja iluminada pelo sol do humor e da irreverência de Suassuna, de outro a escuridão rasteira e criminosa da bancada da bala e do agronegócio; de um lado a inteligência aguda, dorida e sutilmente irônica, mas universal, de Raduan, de outro a ignorância e a mediocridade de quem não consegue sequer transcender o próprio umbigo.

De um lado a reinvenção dos sentidos do próprio corpo de Bertazzo, Deborah Colker, Stoklos, de outro essas monstruosidades estáticas de gordura e nervos contraditoriamente reunidos, que negam a maravilhosa máquina humana de belezas de Da Vinci.

De um lado as janelas da alma, abertas para o mundo, as Jéssicas de desejo e superação, os Carandirus de lucidez e coragem, de outro os porões da tortura, Ustras de covardia e medo, de velhacaria hipócrita.

De um lado o encantamento iluminado de erotismo e desejo de Zé Celso, a demolidora verve pagã do grande provocador Abujamra, do outro a atuação de nojo nas sombras, nas frestas, nos paraísos fiscais, de Cunhas de engonço.

De um lado a linha de incisão de Poty, que respira sonho e malabarismo, de outro trilhos abandonados da linha morta que vai dar na grande cova rasa dos covardes e mil vezes medíocres, condenados ao pesadelo de si mesmos.

A grandeza desse paradoxo poderia ser estendida para além do infinito, tanta a riqueza, formalizada em obras, da cultura brasileira, e tamanha e secular a barbaridade de que é feita a política nacional. Paradoxo insuperável, parece.    

quinta-feira, 7 de abril de 2016

E. M. Cioran / 3



Quando percebo que estou escorregando para o sono, tenho a impressão de mergulhar num paraíso providencial, de cair por toda a eternidade, sem nunca mais poder escapar. Então, nenhuma vontade de fugir me perturba. O que desejo, nessas ocasiões, é poder perceber cada um daqueles instantes o mais nitidamente possível, sem perder nada, usufruindo deles até o limite da inconsciência, antes da beatitude.

Tradução de Carlos Dala Stella


Quand j'observe mon glissement dans le sommeil, j'ai l'impression de m'enfoncer dans un abîme providentiel, d'y tomber pour l'éternité, sans pouvoir jamais m'en évader. D'ailleurs aucun désir d'évasion ne m'effleure. Ce que je souhaite dans ces instants, c'est de les percevoir le plus nettement possible, de n'en rien perdre et d'en jouir jusqu'au dernier, avant l'inconscience, avant la béatitude.

Aveux et Anathémes, E.M.Cioran


E. M. Cioran, Spaima, manuscrit de la traduction roumaine du poème Angoisse de Stéphane Mallarmé - next picture
     E. M. Cioran, Spaima, manuscrito da tradução romena do poema
                        Angústia, de Stéphane Mallarmé.