O que se deu
ontem, na câmara dos deputados, em Brasília, repercutido nas ruas de várias
cidades brasileiras, infelizmente não deixa dúvidas: apesar de nossa
imensurável riqueza afetiva, de uma subjetividade sempre pronta a florescer nas
mais adversas circunstâncias, o Brasil é um país a um só tempo barbaramente
ingênuo e maquiavelicamente bárbaro. Na contramão de uma maturidade artística
exuberante, a política brasileira, com todo o seu corolário social, minimamente
satisfeito, parece nunca amadurecer de fato.
Difícil
imaginar um paradoxo mais extremado.
De um lado a silenciosa
delicadeza construtiva de Volpe, de outro os barulhentos golpes a machado do
preconceito, do ódio, da vingança; de um lado a ‘lama estelar’ da alma
metafísica do ser de Iberê, de outro o raso salobro do raciocínio cego, que não
progride um centímetro além de sua sombra.
De um lado as
filigranas de harmonia de Hamilton de Holanda, de Guinga, de Mehmari, de outro
o discurso tosco, desarticulado e falastrão; de um lado a lâmina de doçura da
voz de Virgínia Rodrigues, de outro o azedo amarento da língua mordendo a
própria incompetência.
De um lado
mundos de ternura e aceitação de Bandeira, Quintana, Augusto Frederico Schmidt,
Adélia Prado, de outro a voracidade grosseira dos urubus verde-amarelos do
capital, da usura e do lucro desmedidos.
De um lado a
imaginação sertaneja iluminada pelo sol do humor e da irreverência de Suassuna,
de outro a escuridão rasteira e criminosa da bancada da bala e do agronegócio;
de um lado a inteligência aguda, dorida e sutilmente irônica, mas universal, de
Raduan, de outro a ignorância e a mediocridade de quem não consegue sequer
transcender o próprio umbigo.
De um lado a
reinvenção dos sentidos do próprio corpo de Bertazzo, Deborah Colker, Stoklos,
de outro essas monstruosidades estáticas de gordura e nervos contraditoriamente
reunidos, que negam a maravilhosa máquina humana de belezas de Da Vinci.
De um lado as
janelas da alma, abertas para o mundo, as Jéssicas de desejo e superação, os
Carandirus de lucidez e coragem, de outro os porões da tortura, Ustras de
covardia e medo, de velhacaria hipócrita.
De um lado o
encantamento iluminado de erotismo e desejo de Zé Celso, a demolidora verve
pagã do grande provocador Abujamra, do outro a atuação de nojo nas sombras, nas
frestas, nos paraísos fiscais, de Cunhas de engonço.
De um lado a
linha de incisão de Poty, que respira sonho e malabarismo, de outro trilhos
abandonados da linha morta que vai dar na grande cova rasa dos covardes e mil
vezes medíocres, condenados ao pesadelo de si mesmos.
A grandeza
desse paradoxo poderia ser estendida para além do infinito, tanta a riqueza,
formalizada em obras, da cultura brasileira, e tamanha e secular a barbaridade
de que é feita a política nacional. Paradoxo insuperável, parece.