sábado, 16 de fevereiro de 2019

Recriações / Picasso 3

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O retrato caiu em desuso, o retrato de ateliê, com tinta, grafite, arame, argila. Não entre as crianças, felizmente, nem entre os pintores de final de semana. Talvez por conta da abstratização nem tanto da arte em si, iniciada há cem anos, mas do discurso artístico mantido vivo ainda hoje no grande circuito das bienais, galerias e leilões mundo afora. De qualquer modo, o retrato resiste num mundo meio à parte. Tomar o rosto de alguém como pretexto para um trabalho, e não se trata mais do que isso, significa explorar uma topografia riquíssima, à qual subjaz um substrato ainda mais rico de possibilidades. Esse jogo de desvelamento, por mais velozmente que se resolva, embora possa durar dias intermináveis, esconde a construção compósita de um rosto espelhado, misto do que vemos a nossa frente e do que supomos ver, feito de nossas próprias marcas de identidade, incluídas as idiossincrasias. Explorar essa pequena baía é um prazer; não há paisagem humana tão adensada de sentidos. Não chega a ser um grande prejuízo os retratados quase nunca ficarem satisfeitos com o resultado. A exploração plástica já coletou uma vértebra que seja do inominável que supomos estar descobrindo.

Recriações / Picasso 2

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Há artistas incontornáveis. Pablito é um deles. Fecundo, exuberante, destruidor, genial mesmo nas precariedades. Gosto de pensar que o grande artista é aquele que deixa transparecer sua personalidade tanto nos acertos como nos erros. Porque alguns artistas são tão ímpares que não conseguem errar senão de modo personalíssimo. Há equívocos incontornáveis na história da arte. Tatear como um cego os avanços e recuos, as hesitações, os ímpetos camicazes desses erros permite desvelar os mecanismos mais íntimos de elaboração da obra, sem meias verdades, sem mistificação. O erro, mais do que o acerto, deixa transparecer de que ímpeto é feita a tecitura de uma tela, uma escultura, um desenho. O erro: essa mina.

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Recriações / Picasso 1

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O dia-a-dia do ateliê também é feito de recriações. Copiando se aprende sem dispor das palavras. Porque as palavras não dão conta da imensidão de estar vivo. De minha parte, para que o exercício não se reduza ao lugar-comum do grafite ou do nanquim, essenciais, copio com estilete. Recortar me coloca problemas que tenho que resolver na urgência do traço, sem possibilidade de correção. Satisfaz-se a curiosidade correndo uma série de pequenos riscos. Essas recriações dão a medida, ainda que em escala mínima, mas sempre de modo inequívoco, da amplitude de nossa imaginação ou de seu raquitismo. Põe-se à prova, como em treinamento. E sem exercícios diários não há curiosidade que nos salve.

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2019


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AULAS EM DEZEMBRO

duas foram as aulas de emudecer

a primeira com meu pai
atingido subitamente na garganta
na raiz das cordas vocais

a segunda com meu irmão
podado drasticamente no cérebro
sem que sobrasse viva ramificação

ambas as aulas em dezembro
ambas fatais – 7 anos a separá-las

desde então engulo o que digo
sílaba a sílaba, grão a grão

22.01.2007

Essa cadeira foi um presente ao meu pai, no último ano. Com um binóculos ele ficava observando as pombas carijós comendo milho sob o eucalipto do quintal. Depois ela pertenceu ao meu irmão. Até que, infelizmente, voltou a mim. Sento nela para ler, no ateliê, e ver o verde ternura rebrotando todo ano nos galhos das árvores.

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O INDIZÍVEL E TRANSLÚCIDO SENTIDO DO AMOR

Num encontro relativamente caótico no restaurante Gilda, dia desses, ganhei de presente de Marilia Kubota ‘O indizível sentido do amor’, autografado com uma letrinha miúda pela própria autora, Rosângela Vieira Rocha, que eu não conhecia. Contente com a dupla gentileza, da poeta e da romancista, tratei de minorar, ainda que tardiamente, minha ignorância, iniciando naquela mesma noite a leitura.
E o milagre se deu, atiçado pelo sentido poético do título, logo nas primeiras páginas: o amor eterno, agora rememorado, ou revivido num contínuo vir-a-ser, vem em nossa direção com uma translucidez absoluta, como se fôssemos nós a pessoa que a narradora busca desde o primeiro parágrafo para fechar a ferida da perda do marido. Sentimos desde o início que é em nós que ela vai ‘alvejar a alma’ e ‘alcançar um fiapo de paz’ – e nós nela, a contraface do mesmo milagre, mediado pela leitura.
Mas a força do livro não está apenas no transcurso de suas duas narrativas, a do encontro do casal ainda jovem, seguido de seus desdobramentos ao longo do tempo, e os vinte e três dias de internamento do marido na UTI, até a morte, alternadas em capítulos curtos. A força está principalmente na própria natureza da linguagem utilizada, de uma transparência cuja naturalidade não só veste com justeza cada fato e cada sentimento narrado, mas também assombra pela translucidez com que cada sentimento e cada fato ecoa em nós. 
Parece muito simples e natural essa linguagem absolutamente transparente, pela qual passamos como quem respira, ou bebe água, ou caminha – como não podia deixar de ser. Mas essa simplicidade estrutural não pode ser senão fruto de uma maturação complexa da vida e da própria escrita. Ela evidencia um grau tão grande de adequação da história de amor que se narra, incluídos os percalços políticos do período da ditadura, com o próprio uso da linguagem, que temos a ilusão de que as coisas não podiam ser senão assim como foram. E o arco se completa: não há nenhuma desumanidade na tragédia final, é a vida apenas, ora feita de desejo, luta e amor, ora de perda, dor e ainda amor, agora cernido e quase metafísico. 
Em duas ou três noites li o livro. Procurei na internet uma resenha que fosse, na Folha, no Estadão, n’O Globo, e nada, embora o livro tenha saído em 2017 e a autora tenha outros onze livros publicados, além de ter recebido vários prêmios literários. Fiquei pensando que essa transparência translúcida de linguagem talvez não tenha sido bem compreendida; tão fácil reduzir o livro a um relato de perda, o que já seria um esforço tremendo de auto-análise e superação, quando na verdade, por mais relativa que seja a verdade, o que temos nas mãos é a invenção de uma lucidez sem transbordamento, justíssima. Nem a narrativa desborda para além das margens, inverossímil, nem a linguagem reivindica exibicionismos. 
Se somarmos esse domínio narrativo inequívoco, porém não sobressalente, ao fato de uma mulher nos ter franqueado o acesso a ele, talvez expliquemos em boa parte o silêncio imperdoável da crítica. O posfácio de Maria Valéria Rezende, no entanto, preenche substancialmente essa lacuna, explicitando, por exemplo, a adesão solidária e cúmplice do leitor à narrativa. Além de matéria no Correio Braziliense e a ótima entrevista ao Leituras, da TV Senado, entre outros. 
De maneira alguma procuro preencher essa lacuna escrevendo aqui. Isso é um agradecimento e o desejo alegre de a partir de agora me pôr publicamente entre os leitores de Rosângela Vieira Rocha.