segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

sábado, 16 de novembro de 2013

DOMINGO EM SANTA FELICIDADE



   
         Sobre a mesa da biblioteca havia uma bandejinha de isopor com três libélulas secas. Faltavam algumas pernas. Mas as asas estavam intactas: minúsculos vitrais sem cor, translúcidos. Acompanhar com uma lupa aquela nervura de delicadezas foi a primeira coisa que ele fez naquele domingo, antes mesmo de preparar o café.

         Depois, já na cozinha, o café preto na xícara, ficou pensando se seria capaz de desenhar uma libélula. Não uma libélula ipsis litteris, mas o grafismo dela, com seu motor dormente, pousada. “Abstrata e vera”, disse em voz alta, como um mensageiro de si mesmo, vindo de longe. Entre um gole e outro, o pressentimento de sempre, agridoce, de que o mundo cabia numa ninharia.

         No caminho para o ateliê, quebrou um galho de pitangueira da grossura de um dedo. Foi torcendo lentamente o galho para que as fibras se descolassem umas das outras antes de romperem. Conseguiu uma quebra irregular, cheia de pontas finas, como um tufo de escova. Mais a frente, arrancou um galhinho fino de um arbusto, repetindo o gesto de torcer até que primeiro a casca depois o cerne se rompessem, fibrentos. Ainda quebrou um terceiro galho.

         Enquanto caminhava, pisando na sombra diagonal da araucária do pequeno bosque, ouriçava com o polegar a ponta dos gravetos que tinha colhido. Ao mais grosso caberia a conformação do corpo, “num gesto único”, soprou o chinês andarilho que percorria algum desfiladeiro obscuro de sua cabeça, irônico. Com os outros dois, dependendo da conformação de cada um, a nervura das asas.

         Abriu a porta de baixo e subiu direto para o piso de cima. O sol entrava pelas janelas, desenhando longas tiras no cimento alisado. Espalhados pelo chão, pedaços de chassi, revistas, aparas de papel das últimas colagens, barbantes, lascas de bambu, panos sujos, algodão cru. Ele se apegava a toda espécie de sobra, porque sabia que em algum momento precisaria delas para começar algum trabalho. Tinha prazer em caminhar sobre essa porcaria toda, não havia melhor modo de tratar a inspiração.

         Apanhou uma folha grande de papel e prendeu-a sobre um pedaço de papelão, que soltou no chão. Usava grampos de roupa, desses de madeira, antigos. Abriu o tinteiro de nanquim e ajoelhou-se em silêncio. O ronco dos motores, o som alto, martelado nos graves, chegava como se os carros passassem logo ali, do outro lado da parede. Mas nada disso tinha muita importância, ele precisava apenas começar. À primeira equação se sucederiam outras, num ritmo às vezes mais, às vezes menos difícil, mas que afinal de contas daria em algum lugar. 

         Quem o visse pelas costas não veria nada. Apenas alguns movimentos repetitivos do braço direito, indo e vindo, a troca dos gravetos, o mergulhar deles na tinta, alguns respingos, resmungos. Mais nada. Foi o que pode ver e ouvir a garota que acabava de subir as escadas, em absoluto silêncio, quase em câmara lenta, agora parada no último degrau, sem ser percebida. 

         Várias vezes ela o havia surpreendido assim, entregue ao trabalho. Sabia que era bem vinda, mas não devia interrompê-lo. Ficou lá parada por uma boa meia hora, até que decidiu sentar. Ao dobrar as pernas o vestido armou um pouco, exalando o perfume do banho recém-tomado. Talvez ele tivesse terminado o desenho, mas também é possível que tenha sentido o aroma familiar – e virado de leve a cabeça, o olhar sobre o ombro esquerdo, convidando-a a se aproximar antes mesmo de sorrir.

         Ela levantou, o contentamento assustado crescendo por dentro, e só então sorriu em retribuição àquele olhar. Ele largou o pincel improvisado, fechou o tinteiro e antes que levantasse sentiu os joelhos da filha nas costas, as coxas aninhando a cabeça.

         – Achei que você ia dormir a manhã toda.
         – Mas eu dormi a manhã toda – ela disse apontando com os olhos marotos o relógio parado numa das paredes, os ponteiros marcando 11h45 há séculos.
         – É, vai ver eu não vi o tempo passar, como sempre. E, apertando os tornozelos da menina como se a chamasse: O que você acha, essa libélula está viva ou morta?
         – Morta, claro – ela disse, entrando no parque de diversões do pai.
         – Mas ela acabou de nascer.
         – Sinto muito te dizer, mestre china, mas então ela nasceu morta.
         – Você não gostou?
         – Gostei muito, você fez com esses pauzinhos aí?
         – Como é que você pode gostar se ela está morta?
         – Não complica, uma coisa é uma libélula de verdade, voando solta por aí, outra um desenho.

         É verdade que ele se sentia prolixo, gostaria de controlar o ímpeto de compreender as coisas, sem didatizá-las como fazia tão frequentemente. Será que a filha pressentia, como ele, que a vida sempre levava vantagem sobre um desenho, uma pintura ou um poema? Mas daí a dizer que um desenho é coisa morta...
         Como se lesse seus pensamentos, ela continuou:
          – Esquece, você complica tudo.  – E puxou o pai pela mão.  – Quero te mostrar uma coisa.  

         No sofá vermelho, lado a lado, ela levanta o vestido quase até a cintura, a calcinha branca transparente à mostra.
         – Comprei ontem, não parece uma nuvem?

         Pelas janelas pressente-se que o tempo está mudando. O vento faz caírem sapés sobre o telhado do ateliê, alguns pinhões encruados despencam. No pátio lateral, as folhas das helicônias e da bananeira balançam para lá e para cá, estandartes firmemente presos ao mastro. Os bambus rangem uns contra os outros. As rajadas de vento entram pelas frestas, levantando um pedaço de papel, uma asa seca de borboleta, um toco de barbante. A fina camada de pó do chão rodopia, invisível. O ar está mais quente do que de costume, a chuva prestes a desabar.

         Quando a chuva amaina, eles sobem, não pelo bosque, mas pela estradinha de pedra, a cumplicidade em água viva. De ambos os lados, mais helicônias, touceiras de gengibre azul, espíritos santos. Tudo molhado, luzidio. Ela se inclina e arranca dois dentes de leão, curvados sobre o meio fio de cimento, protegidos por uma folha de bananeira.  Dá um para o pai e levanta o outro na altura dos olhos. E assopra, fazendo as minúsculas sementes se soltarem bruscamente, flutuando no ar, para cima, para depois descerem, lentamente, algumas mais perto, ao alcance das mãos, outras mais longe, sobre o verde úmido, junto ao muro. O pai segura com cuidado aquele caule frágil, para que nenhuma semente se solte.

         Mais tarde, enquanto ela põe uma música depois de passar bom tempo procurando um cd, na cozinha o molho para o macarrão vai adiantado. Banho tomado, o pai pica bem a cebola, corta em pedaços muito pequenos as azeitonas e separa os temperos: massala, tândori, pimenta Jamaica, noz moscada, manjericão...

         – Hoje o molho bolonhesa vai ficar meio asiático. Diz, como se tivesse absoluto controle culinário sobre os improvisos de sempre, irrepetíveis.
         – Uma amiga que morou na Itália me disse que o macarrão que você usa é bem fajuto lá. E completou, se adiantando ao que pressentiu que o pai diria – Mas aqui deve custar uma nota.  

         De costas, ele levanta e abaixa os ombros, simulando desconsolo. Voltando-se, a faca na mão, pede que música era aquela, meio melancólica. Já se podia sentir no ar o aroma da carne moída dourando, misturada aos primeiros ingredientes. Ela disse que o pianista tinha sido seu professor de piano há uns dois anos – lembra? Sobre a tampa do teclado, num vasinho de cinco centímetros, o dente de leão que ele havia ganho há pouco, as sementes brancas descabeladas.

         – Wandula, ele toca num grupo chamado Wandula, aqui de Curitiba. Não acho melancólico, também não se parece com aquela porraloquice do Bordello que você ouve. E dirigiu-se à cozinha, onde começou a pôr a mesa, sem pressa. Antes mesmo de terminar, serviu dois copos de vinho e ofereceu ao pai. O seu não tinha mais do que um dedo. Bebericaram brindando de longe, com os olhos. Ela tinha olhos verdes, bem à superfície.

         Depois do almoço, enquanto a filha carrega a máquina de lavar com pratos e talheres, ele deita no sofá da sala. A música terminou. Por uma das portas de vidro vê-se o frescor das folhas no pequeno bosque, as milhares de gotículas resplandecendo ao sol, que acaba de voltar.  As bromélias estão transbordantes de água, os galhos dos podocarpos encharcados. O verde, vivificado pela tromba d’água de há pouco, deixa passar agora os raios do sol.

         A tarde vai pela metade. Uma faixa de sol entra na sala e ilumina a fotografia na parede dos fundos, junto à escada. Nela aprecem mãe e filha, brincando na areia da praia, à sombra de um imenso guarda sol branco. A filha tem um ano, ano e meio, no máximo. A mãe não mais do que vinte. A menina tenta enfiar o dedo em alguns buraquinhos feitos na areia, que a mãe não para de encher de água. Se fosse rememorar aquela manhã na praia, o pai certamente lembraria da gargalhada da menina quando a água borrifava para fora assim que o dedo entrava no buraco. Apesar das várias tentativas, não conseguiu registrar o riso da filha. Mas a expressão de alegria da mãe estava lá.

         Aos poucos o sono foi chegando, até que ele capotou, para só acordar no finalzinho da tarde, com frio nas pernas. Sentou-se. Sobre o vidro da mesinha de centro um bilhete, a letra uniforme, levemente inclinada para a direita, e a moldura em arabesco, emoldurando as três linhas. Leu, sem que se apagasse a expressão de sono em seu rosto. O que teria sonhado? Não lembrava. Colocou o bilhete de volta sobre a mesa, olhou ao redor da sala conferindo num milésimo de segundo o lugar de tudo, apatetado. E levantou.

         Depois de caminhar a esmo pela casa, desceu para a lavanderia, onde encheu o regador, jogando uma tampinha de adubo na água. Subiu, molhando as plantas dos vasos, os lírios da paz, capim limão, cróton, o bonsai sobre a pedra, os cactos minúsculos. Aos poucos percorreu a varanda de uma ponta a outra, até chegar ao antúrio, junto à biblioteca. O balde vermelho tinha desaparecido dentro do vaso, arrebentado por força das raízes, apodrecido. Há vinte anos aquele antúrio ocupava o mesmo lugar, pegando o sol da manhã, há vinte anos dava flores ininterruptamente. Quantas vezes não pegara a menina, ainda criança, brincando com elas, um pedaço da folha vermelha na boca, ou a espiga amarela na mão.

         Anoiteceu, faz mais de hora que ele está na biblioteca, sentado à mesa de trabalho. Logo ao lado estão as libélulas secas, mas ele não se ocupa delas. Na frente da telinha do computador, abre e fecha janelas, checando informações. Eventualmente vai até a estante e separa um livro. Escreve e reescreve, sempre com interrupções. Às vezes levanta, vai até a enorme porta de correr e encosta o nariz no vidro. Lá fora os sininhos japoneses estão mudos. Nenhum vento, nenhum sopro, sequer uma brisa. A escuridão engole tudo, mal se vê o contorno das árvores, o bloco maciço do ateliê – bloqueando a rua.

         O telefone toca, preenchendo o vazio. Pelo som da campainha ele intui quem é. Atende, indo para o sofazinho de vime. Em silêncio puxa as pernas para cima, aconchegando o corpo nas almofadas. Sente-se no ar o prazer com que ele se entrega à semiobscuridade da biblioteca. Só o abajur da mesa de trabalho está aceso. A tela do computador continua aberta, luminescente. Antes que a proteção de tela apague tudo, não há porque não satisfazer pelo menos essa curiosidade, afinal aquele poema nunca seria publicado:

há dois escândalos
antípodas porém complementares
no reino das flores: o antúrio
cuja espiga central enche os olhos da menina
de espanto e inflorescências
e a tulipa africana, que ao romper
o invólucro de sua florescência
expõe ao sol a vulva de pétalas rubras
fazendo arder obscenidades
nos olhos do velho

Carlos Dala Stella, Revista Helena, nº 3, setembro 2013

sábado, 12 de outubro de 2013

1º pb






































Esta foto, meu primeiro pb, tem 20 anos, pouco mais ou menos. A casa acabava de ser construída. No piso de baixo ficava meu ateliê, onde trabalhei até 2007. A árvore é uma extremosa, também conhecida como resedá, e floresce em dezembro; a aranha, no centro da teia, sou eu.

segunda-feira, 9 de setembro de 2013

Olhar de criança

















Esses são alguns trabalhos das crianças do 6º ano do colégio Medianeira feitos a partir do Mural Inácio de Loyola, em cimento. Quem coordenou o processo foi a professora Luciana Ceschin, com uma sensibilidade lindalinda.

Desenhos como esses, em resposta ao meu trabalho, me devolvem ao silêncio onde tudo começou. Onde tudo sempre começa em mim. E nenhuma palavra pode mais. Nada traduz esse sol de silêncio que queima sem subterfúgio, dentro, de encontro a outros sóis de silêncio, fora, como o incubado sol da infância.   

terça-feira, 6 de agosto de 2013

ESCADA


sobe-se um degrau
o primeiro
com certa hesitação
depois o segundo
e o terceiro

dos primeiros degraus
mal fica a lembrança

sobe-se então
com desenvoltura
e continua-se subindo
degrau a degrau
rumo à imensidão

vai-se pela metade
pelo terço final
mas não se chega
a lugar algum

há o consolo da paisagem
a vertigem da altura
e mal subimos
cinco metros, seis talvez

sobe-se
continua-se subindo
agora com cautela

a cada degrau
está-se mais perto
do último

e o mundo se resume
a um minúsculo quintal


poema inédito de Carlos Dala Stella





quarta-feira, 26 de junho de 2013

Eugenio Montale / 7


BALBUCIO


Tartamudear
tropeçando nas sílabas
ajuda a despertar a língua
do torpor.
Mas o balbucio é demais
e ainda que não faça
barulho, falha.
Melhor resignar-se
à meia palavra. Certa vez
alguém falou tudo
e ninguém entendeu nada.
Acreditava ser o último
falante. Mas continuamos
falando e o mundo
desde então
ficou mudo.



INCESPICARE


Incespicare, incepparsi
è necessario
per destare la lingua
dal suo torpore.
Ma la balbuzie non basta
e se anche fa meno rumore
è guasta lei pure. Così
bisogna rassegnarsi
a un mezzo parlare. Una volta
qualcuno parlò per intero
e fu incomprensibile. Certo
credeva di essere l’ultimo
parlante. Invece è accaduto
che tutti ancora parlano
e il mondo
da allora è muto.

Tradução de Carlos Dala Stella

domingo, 16 de junho de 2013

quarta-feira, 5 de junho de 2013

Fragmentos de um Inácio

Saiu texto meu, intitulado Fragmentos de um Inácio, na Revista de Educação do Colégio Medianeira, a Mediação, que chega ao seu 8º ano e ao 23º número. Através de trechos de meus diários, conto o que me passou pela cabeça enquanto trabalhava na criação do painel mural. Esse artigo junta-se ao vídeo sobre o processo de criação, do Estúdio 42, e ao próprio mural, formando um tripé de linguagens distintas sobre o mesmo tema.


 Pagina-1---CAPA-MEDIAÇÃO-23

http://www.youblisher.com/p/640201-Revista-Mediacao-Edicao-23/