Sobre a mesa da
biblioteca havia uma bandejinha de isopor com três libélulas secas. Faltavam
algumas pernas. Mas as asas estavam intactas: minúsculos vitrais sem cor,
translúcidos. Acompanhar com uma lupa aquela nervura de delicadezas foi a
primeira coisa que ele fez naquele domingo, antes mesmo de preparar o café.
Depois, já na
cozinha, o café preto na xícara, ficou pensando se seria capaz de desenhar uma
libélula. Não uma libélula ipsis litteris, mas o grafismo dela, com seu motor
dormente, pousada. “Abstrata e vera”, disse em voz alta, como um mensageiro de
si mesmo, vindo de longe. Entre um gole e outro, o pressentimento de sempre, agridoce,
de que o mundo cabia numa ninharia.
No caminho
para o ateliê, quebrou um galho de pitangueira da grossura de um dedo. Foi
torcendo lentamente o galho para que as fibras se descolassem umas das outras antes
de romperem. Conseguiu uma quebra irregular, cheia de pontas finas, como um
tufo de escova. Mais a frente, arrancou um galhinho fino de um arbusto,
repetindo o gesto de torcer até que primeiro a casca depois o cerne se
rompessem, fibrentos. Ainda quebrou um terceiro galho.
Enquanto
caminhava, pisando na sombra diagonal da araucária do pequeno bosque, ouriçava com
o polegar a ponta dos gravetos que tinha colhido. Ao mais grosso caberia a
conformação do corpo, “num gesto único”, soprou o chinês andarilho que
percorria algum desfiladeiro obscuro de sua cabeça, irônico. Com os outros
dois, dependendo da conformação de cada um, a nervura das asas.
Abriu a porta de baixo e subiu direto para o piso de cima. O
sol entrava pelas janelas, desenhando longas tiras no cimento alisado.
Espalhados pelo chão, pedaços de chassi, revistas, aparas de papel das últimas
colagens, barbantes, lascas de bambu, panos sujos, algodão cru. Ele se apegava
a toda espécie de sobra, porque sabia que em algum momento precisaria delas
para começar algum trabalho. Tinha prazer em caminhar sobre essa porcaria toda,
não havia melhor modo de tratar a inspiração.
Apanhou uma
folha grande de papel e prendeu-a sobre um pedaço de papelão, que soltou no
chão. Usava grampos de roupa, desses de madeira, antigos. Abriu o tinteiro de
nanquim e ajoelhou-se em silêncio. O ronco dos motores, o som alto, martelado
nos graves, chegava como se os carros passassem logo ali, do outro lado da
parede. Mas nada disso tinha muita importância, ele precisava apenas começar. À
primeira equação se sucederiam outras, num ritmo às vezes mais, às vezes menos
difícil, mas que afinal de contas daria em algum lugar.
Quem o visse
pelas costas não veria nada. Apenas alguns movimentos repetitivos do braço
direito, indo e vindo, a troca dos gravetos, o mergulhar deles na tinta, alguns
respingos, resmungos. Mais nada. Foi o que pode ver e ouvir a garota que
acabava de subir as escadas, em absoluto silêncio, quase em câmara lenta, agora
parada no último degrau, sem ser percebida.
Várias vezes
ela o havia surpreendido assim, entregue ao trabalho. Sabia que era bem vinda,
mas não devia interrompê-lo. Ficou lá parada por uma boa meia hora, até que
decidiu sentar. Ao dobrar as pernas o vestido armou um pouco, exalando o
perfume do banho recém-tomado. Talvez ele tivesse terminado o desenho, mas
também é possível que tenha sentido o aroma familiar – e virado de leve a
cabeça, o olhar sobre o ombro esquerdo, convidando-a a se aproximar antes mesmo
de sorrir.
Ela levantou,
o contentamento assustado crescendo por dentro, e só então sorriu em
retribuição àquele olhar. Ele largou o pincel improvisado, fechou o tinteiro e
antes que levantasse sentiu os joelhos da filha nas costas, as coxas aninhando
a cabeça.
– Achei que
você ia dormir a manhã toda.
– Mas eu dormi
a manhã toda – ela disse apontando com os olhos marotos o relógio parado numa
das paredes, os ponteiros marcando 11h45 há séculos.
– É, vai ver
eu não vi o tempo passar, como sempre. E, apertando os tornozelos da menina
como se a chamasse: O que você acha, essa libélula está viva ou morta?
– Morta, claro
– ela disse, entrando no parque de diversões do pai.
– Mas ela
acabou de nascer.
– Sinto muito
te dizer, mestre china, mas então ela nasceu morta.
– Você não
gostou?
– Gostei
muito, você fez com esses pauzinhos aí?
– Como é que
você pode gostar se ela está morta?
– Não
complica, uma coisa é uma libélula de verdade, voando solta por aí, outra um
desenho.
É verdade que
ele se sentia prolixo, gostaria de controlar o ímpeto de compreender as coisas,
sem didatizá-las como fazia tão frequentemente. Será que a filha pressentia,
como ele, que a vida sempre levava vantagem sobre um desenho, uma pintura ou um
poema? Mas daí a dizer que um desenho é coisa morta...
Como se lesse
seus pensamentos, ela continuou:
– Esquece, você complica tudo. – E puxou o pai pela mão. – Quero te mostrar uma coisa.
No sofá
vermelho, lado a lado, ela levanta o vestido quase até a cintura, a calcinha
branca transparente à mostra.
– Comprei
ontem, não parece uma nuvem?
Pelas janelas
pressente-se que o tempo está mudando. O vento faz caírem sapés sobre o telhado
do ateliê, alguns pinhões encruados despencam. No pátio lateral, as folhas das
helicônias e da bananeira balançam para lá e para cá, estandartes firmemente
presos ao mastro. Os bambus rangem uns contra os outros. As rajadas de vento
entram pelas frestas, levantando um pedaço de papel, uma asa seca de borboleta,
um toco de barbante. A fina camada de pó do chão rodopia, invisível. O ar está mais
quente do que de costume, a chuva prestes a desabar.
Quando a chuva
amaina, eles sobem, não pelo bosque, mas pela estradinha de pedra, a
cumplicidade em água viva. De ambos os lados, mais helicônias, touceiras de
gengibre azul, espíritos santos. Tudo molhado, luzidio. Ela se inclina e
arranca dois dentes de leão, curvados sobre o meio fio de cimento, protegidos
por uma folha de bananeira. Dá um para o
pai e levanta o outro na altura dos olhos. E assopra, fazendo as minúsculas sementes
se soltarem bruscamente, flutuando no ar, para cima, para depois descerem,
lentamente, algumas mais perto, ao alcance das mãos, outras mais longe, sobre o
verde úmido, junto ao muro. O pai segura com cuidado aquele caule frágil, para
que nenhuma semente se solte.
Mais tarde,
enquanto ela põe uma música depois de passar bom tempo procurando um cd, na
cozinha o molho para o macarrão vai adiantado. Banho tomado, o pai pica bem a
cebola, corta em pedaços muito pequenos as azeitonas e separa os temperos:
massala, tândori, pimenta Jamaica, noz moscada, manjericão...
– Hoje o molho
bolonhesa vai ficar meio asiático. Diz, como se tivesse absoluto controle
culinário sobre os improvisos de sempre, irrepetíveis.
– Uma amiga
que morou na Itália me disse que o macarrão que você usa é bem fajuto lá. E
completou, se adiantando ao que pressentiu que o pai diria – Mas aqui deve custar
uma nota.
De costas, ele
levanta e abaixa os ombros, simulando desconsolo. Voltando-se, a faca na mão, pede
que música era aquela, meio melancólica. Já se podia sentir no ar o aroma da
carne moída dourando, misturada aos primeiros ingredientes. Ela disse que o
pianista tinha sido seu professor de piano há uns dois anos – lembra? Sobre a
tampa do teclado, num vasinho de cinco centímetros, o dente de leão que ele
havia ganho há pouco, as sementes brancas descabeladas.
– Wandula, ele
toca num grupo chamado Wandula, aqui de Curitiba. Não acho melancólico, também
não se parece com aquela porraloquice do Bordello que você ouve. E dirigiu-se à
cozinha, onde começou a pôr a mesa, sem pressa. Antes mesmo de terminar, serviu
dois copos de vinho e ofereceu ao pai. O seu não tinha mais do que um dedo. Bebericaram
brindando de longe, com os olhos. Ela tinha olhos verdes, bem à superfície.
Depois do
almoço, enquanto a filha carrega a máquina de lavar com pratos e talheres, ele
deita no sofá da sala. A música terminou. Por uma das portas de vidro vê-se o
frescor das folhas no pequeno bosque, as milhares de gotículas resplandecendo
ao sol, que acaba de voltar. As bromélias
estão transbordantes de água, os galhos dos podocarpos encharcados. O verde, vivificado
pela tromba d’água de há pouco, deixa passar agora os raios do sol.
A tarde vai
pela metade. Uma faixa de sol entra na sala e ilumina a fotografia na parede
dos fundos, junto à escada. Nela aprecem mãe e filha, brincando na areia da
praia, à sombra de um imenso guarda sol branco. A filha tem um ano, ano e meio,
no máximo. A mãe não mais do que vinte. A menina tenta enfiar o dedo em alguns
buraquinhos feitos na areia, que a mãe não para de encher de água. Se fosse rememorar
aquela manhã na praia, o pai certamente lembraria da gargalhada da menina
quando a água borrifava para fora assim que o dedo entrava no buraco. Apesar
das várias tentativas, não conseguiu registrar o riso da filha. Mas a expressão
de alegria da mãe estava lá.
Aos poucos o
sono foi chegando, até que ele capotou, para só acordar no finalzinho da tarde,
com frio nas pernas. Sentou-se. Sobre o vidro da mesinha de centro um bilhete,
a letra uniforme, levemente inclinada para a direita, e a moldura em arabesco,
emoldurando as três linhas. Leu, sem que se apagasse a expressão de sono em seu
rosto. O que teria sonhado? Não lembrava. Colocou o bilhete de volta sobre a
mesa, olhou ao redor da sala conferindo num milésimo de segundo o lugar de
tudo, apatetado. E levantou.
Depois de
caminhar a esmo pela casa, desceu para a lavanderia, onde encheu o regador,
jogando uma tampinha de adubo na água. Subiu, molhando as plantas dos vasos, os
lírios da paz, capim limão, cróton, o bonsai sobre a pedra, os cactos
minúsculos. Aos poucos percorreu a varanda de uma ponta a outra, até chegar ao
antúrio, junto à biblioteca. O balde vermelho tinha desaparecido dentro do
vaso, arrebentado por força das raízes, apodrecido. Há vinte anos aquele
antúrio ocupava o mesmo lugar, pegando o sol da manhã, há vinte anos dava
flores ininterruptamente. Quantas vezes não pegara a menina, ainda criança,
brincando com elas, um pedaço da folha vermelha na boca, ou a espiga amarela na
mão.
Anoiteceu, faz
mais de hora que ele está na biblioteca, sentado à mesa de trabalho. Logo ao
lado estão as libélulas secas, mas ele não se ocupa delas. Na frente da telinha
do computador, abre e fecha janelas, checando informações. Eventualmente vai
até a estante e separa um livro. Escreve e reescreve, sempre com interrupções.
Às vezes levanta, vai até a enorme porta de correr e encosta o nariz no vidro.
Lá fora os sininhos japoneses estão mudos. Nenhum vento, nenhum sopro, sequer
uma brisa. A escuridão engole tudo, mal se vê o contorno das árvores, o bloco
maciço do ateliê – bloqueando a rua.
O telefone
toca, preenchendo o vazio. Pelo som da campainha ele intui quem é. Atende, indo
para o sofazinho de vime. Em silêncio puxa as pernas para cima, aconchegando o
corpo nas almofadas. Sente-se no ar o prazer com que ele se entrega à semiobscuridade
da biblioteca. Só o abajur da mesa de trabalho está aceso. A tela do computador
continua aberta, luminescente. Antes que a proteção de tela apague tudo, não há
porque não satisfazer pelo menos essa curiosidade, afinal aquele poema nunca
seria publicado:
há dois
escândalos
antípodas
porém complementares
no
reino das flores: o antúrio
cuja
espiga central enche os olhos da menina
de
espanto e inflorescências
e a
tulipa africana, que ao romper
o
invólucro de sua florescência
expõe
ao sol a vulva de pétalas rubras
fazendo
arder obscenidades
nos
olhos do velho
Carlos Dala Stella, Revista Helena, nº 3, setembro 2013