Cada poema traduzido me custa meses. Pela dificuldade de encontrar a palavra que melhor traduza aquilo que, imagino, o autor quis dizer; e de fazê-la ocupar seu lugar preciso no corpo do poema vertido para a língua portuguesa. Sem essa integridade semântica, que dá à versão de certos poemas uma autonomia misteriosa, nenhuma tradução vale a pena. Todo bom poema é um corpo vivo, um enfeixamento inequívoco de significados em tensão permanente. Recriá-lo em outra língua é uma operação delicada e a língua portuguesa oferece um arsenal amazônico de delicadezas, muitas delas ainda indomadas. Além das dificuldades tantas vezes apontadas. Embrenhar-se nessa empreitada significa expor-se a dificuldades intransponíveis, mas com que prazer ela permite manusear o corpo da língua portuguesa.
Por isso, quando no início dessa semana li que Nikos Kazantzakis, além da vastidão do que escreveu, ainda traduziu a Divina Comédia, a Ilíada, Fausto, Otelo, os poetas espanhóis modernos e Tagore... fiquei envergonhado e decidi retomar ainda uma vez a tradução do poema Minha musa, de Eugenio Montale, não como "remédio seguro contra o tédio", segundo as surpreendentes palavras do escritor grego, mas pelo prazer miúdo de transplantar uma nova espécie para o jardim semântico da língua portuguesa.
MINHA MUSA
Já vai longe minha musa: talvez
nunca tenha existido (como crê a maioria).
Mas se uma houve, veste trapos de espantalho
improvisado sobre o tabuleiro verde das videiras.
Esvoaça como pode; resistiu ao vento
ficando reta, só um pouco inclinada.
Se o vento para, continua a agitar-se
como se me dissesse: caminha sem medo,
enquanto te puder ver, terás vida.
Minha musa há muito deixou um armário
com trajes de teatro; saía dele o refinamento
com que se vestia. Um dia se encheu de mim
e se foi, orgulhosa. Hoje ainda resta uma manga;
com ela dirige um quarteto de sopros,
a única música que suporto.
LA MIA MUSA
La mia Musa è lontana: si direbbe
(è il pensiero dei più) che mai sia esistita.
Se pure una ne fu, indossa i panni dello spaventacchio
alzato a malapena su una scacchiera di viti.
Sventola come può; ha resistito a monsoni
restando ritta, solo um po’ ingobbita.
Se il vento cala sa agitarsi ancora
quasi a dirmi cammina non temere,
finché potrò vederti ti darò vita.
La mia Musa ha lasciato da tempo un ripostiglio
di sartoria teatrale; ed era d’alto bordo
chi di lei si vestiva. Un giorno fu riempita
di me e ne andò fiera. Ora ha ancora una manica
e con quella dirige un suo quartetto
di cannucce. È la sola musica che sopporto.
Tradução de Carlos Dala Stella