sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

poemas de madeira / 4









Estas esculturas, chamo-as de poemas de madeira porque seu sentido me escapa, porque de alguma forma elas me devolvem a um espaço de essencialidade onde o mundo se resume ao rés do chão. E à delicadeza densa que há nele, simples como a madeira, como uma pedra, inequívocas.

Estas esculturas, elas são feitas de bambu, barbante, madeira, pedra e papel arroz. Quase todas foram surgindo de sonhos, de visões fragmentadas que depois tento recuperar, não como quem costura pedaços avulsos. Mas tentando sempre me manter fiel a uma impressão geral que esses sonhos causam em mim. 

Estas esculturas, me surpreendo a cada instante quando trabalho nelas, com o rumo que as coisas vão tomando, imprevisto, apesar de um fio guia intuitivo que me alimenta. O sentido que há nelas, procuro tocá-lo desprovido das palavras, mas com as mãos todas dos olhos, tateantes. Com um medo tremendo que sua fragilidade se perca. E agradeço pela leveza com que elas se dão.   

quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

Eugenio Montale, 2

Cada poema traduzido me custa meses. Pela dificuldade de encontrar a palavra que melhor traduza aquilo que, imagino, o autor quis dizer; e de fazê-la ocupar seu lugar preciso no corpo do poema vertido para a língua portuguesa. Sem essa integridade semântica, que dá à versão de certos poemas uma autonomia misteriosa, nenhuma tradução vale a pena. Todo bom poema é um corpo vivo, um enfeixamento inequívoco de significados em tensão permanente. Recriá-lo em outra língua é uma operação delicada e a língua portuguesa oferece um arsenal amazônico de delicadezas, muitas delas ainda indomadas. Além das dificuldades tantas vezes apontadas. Embrenhar-se nessa empreitada significa expor-se a dificuldades intransponíveis, mas com que prazer ela permite manusear o corpo da língua portuguesa. 

Por isso, quando no início dessa semana li que Nikos Kazantzakis, além da vastidão do que escreveu, ainda traduziu a Divina Comédia, a Ilíada, Fausto, Otelo, os poetas espanhóis modernos e Tagore... fiquei envergonhado e decidi retomar ainda uma vez a tradução do poema Minha musa, de Eugenio Montale, não como "remédio seguro contra o tédio", segundo as surpreendentes palavras do escritor grego, mas pelo prazer miúdo de transplantar uma nova espécie para o jardim semântico da língua portuguesa.


MINHA MUSA

Já vai longe minha musa: talvez
nunca tenha existido (como crê a maioria).
Mas se uma houve, veste trapos de espantalho
improvisado sobre o tabuleiro verde das videiras.

Esvoaça como pode; resistiu ao vento
ficando reta, só um pouco inclinada.
Se o vento para, continua a agitar-se
como se me dissesse: caminha sem medo,
enquanto te puder ver, terás vida.

Minha musa há muito deixou um armário
com trajes de teatro; saía dele o refinamento
com que se vestia. Um dia se encheu de mim
e se foi, orgulhosa. Hoje ainda resta uma manga;
com ela dirige um quarteto de sopros,
a única música que suporto.



LA MIA MUSA

La mia Musa è lontana: si direbbe
(è il pensiero dei più) che mai sia esistita.
Se pure una ne fu, indossa i panni dello spaventacchio
alzato a malapena su una scacchiera di viti.

Sventola come può; ha resistito a monsoni
restando ritta, solo um po’ ingobbita.
Se il vento cala sa agitarsi  ancora
quasi a dirmi cammina non temere,
finché potrò vederti ti darò vita.

La mia Musa ha lasciato da tempo un ripostiglio
di sartoria teatrale; ed era d’alto bordo
chi di lei si vestiva. Un giorno fu riempita
di me e ne andò fiera. Ora ha ancora una manica
e con quella dirige un suo quartetto
di cannucce. È la sola musica che sopporto.

Tradução de Carlos Dala Stella