segunda-feira, 1 de junho de 2020

A ARTE DA INVENÇÃO MÁGICA / Mariana Ianelli

Que triste seria nosso ofício sem as parcerias. Sem algumas delas nosso trabalho sequer seria conhecido. Outras acrescem sentido ao sentido que acreditamos estar produzindo. Me sinto grato a ambas, imensamente grato. E alegre com os encontros.
Reproduzo a seguir a apresentação de Mariana Ianelli ao meu livro NAS MÃOS DE BENEDITA, Ed. Positivo. A ilustração pertence ao conto que dá título ao livro.


A ARTE DA INVENÇÃO MÁGICA / Mariana Ianelli

Começar por onde, se aqui entramos irresistivelmente atraídos como naquele livro de areia sem princípio nem fim? Que não se enganem os leitores com a aparente brevidade destes contos. Carlos Dala Stella é sabedor de ilusionismos, transfigurações, metamorfoses, secretas alquimias. Tudo neste livro é império das mãos e dos olhos: pequenos jardins, teatros e seus bastidores, pensares que ganham corpo dentro de oficinas e ateliês, cinemas mudos da infância. O insubordinável dos sonhos e suas armadilhas encontram campo fértil onde se multiplicar. Vê-se de cima, dos cimos, por dentro, no escuro. Ver é também, aqui, uma experiência tátil.
Entre as camadas destes textos, alguém talvez se lembre do conto A continuidade dos parques, de Cortázar. Talvez alguém pense em Um sonho na Alemanha, de Borges. Em todos eles o conto se estrutura meticulosamente para funcionar numa invenção mágica. Vislumbramos a invenção na ideia e articulação de suas partes, mas seu predicado mágico vai além: nos envolve. Está naquilo que imanta as partes num corpo só, naquilo que insufla espírito numa figura de barro.
Lembram-se da máquina de voar, em O memorial do Convento? Como que simboliza o que ocorre nos textos de Dala Stella. Não é só o extraordinário de pensar uma máquina de voar desenhando suas peças, dispondo pedras, arames, âmbar, lamelas de ferro, esferas. Há ainda o segredo do que vai dentro das esferas. Há ainda o mistério do que atrairá o âmbar e dará unidade viva às partes, leveza, poder de voo. “Oh que maravilha é viver e inventar”, exclama Bartolomeu Lourenço, o padre sonhador (re)criado por Saramago. Por obra da virtude desse fascínio primeiro, desse devanear que medita numa passarola e outras artes, os olhos do inventor pairam sobre campos e telhados antes mesmo de sua máquina de voar ganhar altura.
Assim os olhos do artista Dala Stella, e os de seu livro: olhos de inventor, olhos que meditam, que estão por toda parte, como borboletas indo de pistilo em pistilo, demorando-se aqui e ali, sem se resguardar dos riscos nem se deter num destino final. Importa que pervaguem, tateiem, fecundem, e experienciem o desdobrar-se de uma imagem em outra, em transfigurações potencialmente intermináveis. É “o grande olho lacrimoso” de uma vaca perscrutando transeuntes. São os olhos silenciosos do cachorro ou os “escandalosos olhos amarelos” dos girassóis. São os olhos “em ronda carniceira”, olhares que matam, que compreendem, ou que apenas se cruzam, “cúmplices do mesmo desespero”.
As mãos participam igualmente desse devanear, são mãos que observam tanto quanto os olhos tateiam, mãos que acarinham ou advertem, que plantam ou debulham, fazem música, leem, esculpem, jogam, rezam. Mãos que sustentam o peso imaterial de uma lembrança numa pequena pedra branca e um caderninho. Mãos forjando, junto aos olhos, o nascimento da leveza. Notem que elas aparecem em quase todas as imagens do livro, produzindo, ou contendo nelas mesmas, outros signos, grafismos, gestos. Nelas, o ímpeto, a precisão, o afeto, o zelo, a tentação, a fantasia, potência de amor e morte, linguagem.
Penetramos o infinito espaço imaginário de espelhos contra espelhos e o que vemos nos enreda em mistérios à luz do sol. Há coisas terríveis, inauditas, delicadamente silenciadas. Há esplendores que assombram e terrores como que serenados. Somos invariavelmente atraídos, por fascínio, e fascinados vamos apalpando edifícios de fábula, pisando chãos de miragem, nos fazendo testemunhas oculares de transmutações poéticas, como, nas transmutações visuais de M. C. Escher, peixes se tornando pássaros, escadas para belvederes que sobem enquanto descem ou a mão desenhada que se esgalha do papel para encarnar a mão que trabalha.
Os materiais para esse trabalho de artista são de naturezas e densidades várias: cera de carnaúba e dor de ternura, palavra e emoção muda, violão e pedra. Todos entram na cozinha destes contos, como na vida. São conluios do fogo com o ar, da madeira com a lâmina, da ternura com a tristeza. São armadilhas da lógica, da música, da transparência. Nem mesmo sob a capa do mágico seus truques se acomodam em inofensiva realidade. Os bastidores também têm seus segredos e perigos, como os têm as superfícies polidas e espelhadas.
Um rosto, um pedaço de papel, a madeira, uma ninhada de cachorros, tudo, nos contos de Nas mãos de Benedita, está a transmudar-se constantemente, tudo está “a meio caminho”, como a escultura de Estrutura da leveza, e, por esse mesmo velado fluxo imparável, instante a instante, imagem por imagem, como que um lento e entranhado remodelar se tornasse inaparente, e o olho mais e mais suscetível a espantos no correr do grande tempo.
A respeito da gênese dos contos, ficamos a saber, pelo próprio autor, que alguns vieram de seus diários de ateliê, de “excertos de sonhos, reflexões sobre literatura, música, o tempo”, para os quais depois ele criou “entrechos narrativos”. Excertos e entrechos, agora os leitores poderão perceber, transmudaram-se no cosmo próprio de cada texto, não mais apenas sobre literatura, música e o tempo, mas por obra da literatura, da música e do tempo. São armadilhas de espanto, ternuras acutilantes, finas membranas de mistérios, visões que brotam de demoras contemplativas, entre pressentimento e revelação, pesadelo e maravilha. São calores de infância e pavores em quartos claro-escuros de qualquer um de nós.
Ainda que as imagens possam ser admiradas autonomamente em relação aos textos, é delicioso encontrar aqui e ali o alento comum do inventor que lhes deu forma e figura. Encontrar, por exemplo, nas páginas de A arte muda da fuga, livro anterior de Dala Stella, sua estreia na poesia, a imagem de um galinho de gesso, num desenho, e um certo peixe esculpido em lâminas de papel superpostas, que agora reaparecem (ou assim podemos imaginar), neste livro, na forma e figura de dois contos. Um corpo desdobrável, de papel, que quase se move sozinho, faz-se emblemático da arte de Dala Stella contista: o texto como um corpo-cosmo estruturado em diferentes planos, com energia, harmonia e um algo mais, perturbador, que nos enreda, nos tira o chão, e então o segredo: nos suspende no ar, como naquela máquina de voar, nos e(n)leva.

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