Fala-se muito ultimamente na relação entre poesia e pintura, mas esse tema não é novo, nem faltam exemplos de poetas-pintores. Só a tradição chinesa nos oferece inúmeros nomes de artistas que se dedicaram com igual empenho à pintura e à poesia.
Su Shih (1036 - 1101), mais conhecido como Su Tung - p’o, figura central da dinastia Sung (960 - 1279), foi a um só tempo poeta, prosador, homem público, calígrafo e pintor. Idealizador da escola de “pintores literatos”, ele aglutinou em torno de si vários amigos que desempenharam simultaneamente a poesia e a pintura. O tantas vezes reproduzido retrato imaginário de Li Tai Po, o mais famoso dos poetas chineses, feito com as admiráveis “pinceladas abreviadas” de Liang K’ai (metade do século XIII), é um bom exemplo de como caligrafia e pintura são indissociáveis na tradição artística oriental.
Mas a tradição ocidental também nos fornece exemplos de homens que praticaram ambas as atividades artísticas. É verdade que grande parte deles é reconhecida apenas pelo desempenho numa dessas atividades. Quando se fala em Miguelângelo, por exemplo, nos vem à mente o impetuoso Moisés, a altivez nua e muda de Davi, ou o desespero terno com que Maria - a um só tempo mãe e menina - envolve o filho em seus braços, na Pietá. Mas é injusto esquecer que o pintor do teto da Capela Sistina escreveu também versos como este terceto que fecha um soneto dedicado a Dante:
Ah, se eu fosse ele! Tivesse eu nascido tão pleno,
para sê-lo, com seu amargo exílio e sua virtude,
daria a maior felicidade da humana latitude.
Mas mais recentemente, ao longo dos seus 70 anos de vida, que vão da segunda metade do século XVIII até a primeira metade do século XIX, temos o exemplo do inglês Willian Blake, que embora seja mais conhecido como o autor de Milton e de Jerusalém, foi um dos responsáveis pela ampliação dos processos técnicos da gravura, técnica que ele utilizou desde os 20 anos, tendo ilustrado entre outros os Canterburry Pilgrims, de Chaucer, e também Dante Alighieri.
Mais recentemente ainda, temos uma série de escritores, ou poetas, que flertaram com a pintura, ou pintores que praticaram mais ou menos circunstancialmente a literatura. Os franceses Jacques Prévert, autor de algumas dezenas de colagens surrealistas, e Jean Cocteau, desenhista, pintor e decorador da capela Saint Blaise des Simples, mais o belga Henri Michaux, pertencem ao primeiro grupo. Ernesto Sábato e Lúcio Cardoso ao segundo. O poeta Jorge de Lima e o pintor Portinari exerceram um a atividade do outro. No final da vida, Clarice Lispector pintava, no início de sua carreira, Cézanne escrevia poemas. Alguns afortunado, como Vassili Kandinsky, Paul Klee e especialmente Juan Miró, pintaram poesia.
Se a fusão dessas duas artes não atingiu a perfeição que imaginamos seja possível - movidos não sei por que desejo misterioso - isso naturalmente não impediu que uma série de vasos comunicantes fossem estabelecendo ligações, ás vezes evidentes, às vezes inusitadas, entre poesia e pintura. Dificilmente uma única pessoa seria capaz de intuir sozinha a que grau de complexidade, ou intimidade, chegaria o diálogo entre ambas, por mais instruída e bem intencionada que fosse.
De qualquer forma, é bom lembrar que essas incursões em outro domínio artístico, por mais fracassadas ou diletantes que passam parecer, têm uma importância única para o artista, muitas vezes determinante para o desenvolvimento de sua obra. No final das contas ele brinca com uma possibilidade meio travessa, ilustrada exemplarmente por uma anedaota envolvendo o super-exposto Pablo Picasso.
É sabido que, a partir de determinado momento, o artista vivia rodeado não só de personalidades do mundo artístico, mas também de uma infinidade de chatos e medíocres, artistas ou não. Pois em certa ocasião, em seu atelier-residência Notre-Dame de Vie, em Mougins, Picasso revelou a uma dessas visitas que escrevia poesia tanto ou mais do que pintava, apenas as pessoas é que não o levavam a sério. Ao que a visita respondeu dizendo que talvez no futuro, ao abrir uma enciclopédia, alguém leria: Pablo Picasso, famoso poeta espanhol, nascido em Málaga em 1881, autor de algumas dezenas de livros de poesia. E, como mero complemento: também pintou alguns quadros.
Como já tinha ouvido antes essa mesma hipótese, Picasso ficou impressionado.
Gostaria de lembrar agora, rapidamente, dois procedimentos comuns à poesia e à pintura: o claro-escuro e a colagem; movido não só pelo desejo de compreender em que termos se dá esse diálogo, mas também pelo prazer de lembrar alguns nomes que me são caros.
A técnica do claro-escuro e a da colagem pertencem ambas ao universo das artes plásticas, mas os procedimentos inerentes a cada uma delas encontram utilização corrente na poesia e na literatura de um modo geral.
Paulo Astor Soethe, professor de alemão da Universidade Federal do Paraná, numa passagem de sua tese de doutorado, na qual faz uma leitura comparada das obras A Montanha Mágica, de Thomas Mann, e Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, propõe a intrigante e convincente idéia de que o autor mineiro, em Grande Sertão, se serviu freqüentemente da técnica do claro-escuro.
Segundo essa técnica, nascida provavelmente quando os pintores antigos reproduziam os contornos da sombra projetada pelo sol (Leon Battista Alberti - De pictura), algumas áreas de um quadro ou desenho são deixadas na sombra para que outras áreas apareçam potencializadas, sem que se perca de vista, no entanto, um complexo jogo harmônico entre elas. Esse jogo de luz e sombra, apesar de imitar o que o olho vê à superfície dos corpos ou objetos, confere à representação pictórica volume e profundidade.
Paulo Astor transcreve várias anotações manuscritas sobre pintura do “Caderno de estudos para a obra - Pintura”, de Guimarães Rosa, pertencente ao acervo do Arquivo G. R. do Instituto de Estudos Brasileiros da USP. Numa dessas anotações o romancista escreve, epigramaticamente:
m% = a instantaneidade do desenho / virtuosidade / o claroescuro produz a modelagem / O claro e o escuro servem para exprimir o lado plástico da figura e a fazer sobressair os níveis ocupados pelos objetos, as distâncias que os separam; e a delimitar sua forma”. (p.153)
Logo em seguida, o professor cita um trecho de Grande Sertão que atesta a “aplicação” do conceito de claro-escuro, que Guimarães depreende de leituras teóricas, mas provavelmente também de seu próprio gosto pela pintura. Trata-se de uma cena noturna em que Diadorim sente ciúmes de Otacília, que acaba de conhecer Riobaldo. Transcrevo a citação:
Daí, sendo a noite, aos pardos gatos. Outra nossa noite, na rebaixa do engenho, deitados em couros e esteiras - nem se tinha o espaço de lugar onde rede armar. Diadorim perto de mim. Eu não queria conversa, as idéias que já estavam se acontecendo eram maiores. Assim eu ouvindo o ciciri dos grilos. Na beira da rebaixa, a fogueira feita sarrava se acabando, Alaripe ainda esteve lá, mexendo em tição, pitou um cigarro (GR2, 128).
Talvez pudéssemos acrescentar que essa técnica, tanto na pintura como na literatura, está a serviço de um recurso menos explícito, mas mais abrangente, um recurso que tem ascendência mesmo sobre a colagem, e que a crítica literária chama de “rarefação”, mais especificamente “rarefação de contexto”.
Se é certo que ela nomeia um recurso presente na poesia de várias épocas, cabe à poética contemporânea adotá-la, obviamente não como um item programático, mas como um recurso bastante freqüente, seja pelo caráter fragmentário de vários aspectos da vida contemporânea, seja pela incapacidade de dar unidade a tudo aquilo que nos constitui enquanto indivíduos.
Quando o tradutor José Antonio Arantes diz, por exemplo, na introdução à antologia do poeta irlandês Seamus Heaney, publicada ano passado pela Companhia das Letras, que os poemas de suas coletâneas recentes (Station island, Haw Lantern, de 1987, Seeing things, de 1991, e, The spirit level, de 1996) soam mais rarefeitos, ele provavelmente está-se referindo à pequena extensão do contexto daqueles poemas. Como se eles tivessem uma vocação para a metafísica, ainda que nascidos da terra, da infância, ou, melhor dizendo, do lugar-comum.
Essa ânsia de transcendência pode ser observada em muitos outros poetas, de várias épocas e nacionalidades, mas é raro que a ela corresponda a aptidão técnica da reticência, capaz de desenhar com lúcida precisão o contorno do que é apenas sugerido. Wallace Stevens do longo poema O homem do violão azul (The man with the blue Guitar), ou de um dos seus últimos poemas curtos, o belo Meramente ser (Of mere being), é um outro exemplo feliz dessa poética do arejamento.
MERAMENTE SER
A palmeira no final da mente,
Além do pensamento último, se eleva
Na Brônzea distância,
Um pássaro de penas de ouro
Canta na palmeira, sem sentido humano,
Nem sentimento humano, um canto estrangeiro.
Então compreende-se que não é a razão
Que traz tristeza ou alegria.
O pássaro canta. As penas brilham.
A palmeira paira no limiar do espaço.
O vento roça devagar seus galhos.
As penas de fogo do pássaro pendem frouxas.
Compreendida como um recurso de extrema decantação da linguagem, a rarefação do contexto só aparentemente suspende o fluxo de significados. Ao contrário, esta suspensão momentânea potencializa o significado, solicitando do leitor uma espécie de intuição reflexiva, atenta tanto ao sentido claro das palavras como ao silêncio sobre o qual elas se inscrevem. Perseguir e descobrir a matéria que anima esse silêncio poético é uma exigência vital de certa poesia. “Assim, o riscado interrupto do vaga-lume” poderia figurar “como metáfora desta poesia elíptica, que trabalha com luz e sombra”.
Gostaria de tomar emprestado da crítica literária o termo rarefação justamente porque ele corresponde a um recurso semelhante nas artes plásticas, um recurso que é caro ao meu trabalho: a colagem. Não a colagem como uma simples justaposição de partes, que expõe a cartilagem como um troféu de guerra, e que tão freqüentemente levou à criação de monstros como o do doutor Frankenstein. Nem a colagem que explora o trânsito dos significados engenhosamente descontextualizados. Mas a colagem como a busca de uma nova harmonia, feita de pedaços, mas íntegra e una, cujas articulações funcionem sutilmente, fora do alcance da vista.
Assim compreendida, a colagem não é apenas um fim em si mesma, mas também um meio. Portadora de um significado rarefeito, ela obriga o espectador a perscrutar um espaço desconhecido. O contexto de onde as partes saíram perdeu-se. Tanto a cor como a forma esqueceram o local de origem. A integridade que pretendo que minhas colagens possuam se deve de um lado a esse desligamento do contexto ao qual elas pertenceram originariamente, de outro à descoberta de conexões capazes de instituir um contexto que, por não deixar pistas, pareça surgido de si mesmo.
Ora, é exatamente esse um dos procedimentos mais utilizados por alguns dos escritores pertencentes ao cânone da literatura ocidental, entre eles Walt Whitman, que segundo a biografia de Paul Zweig compunha listas intermináveis de uma estranha miscelânea de objetos, profissões e apontamentos rápidos que depois eram “encaixados” em seus poemas. Processo semelhante ocorre com os Quatro Quartetos, de Eliot, nos quais podem se entrever recortes de outros textos “colados” a uma ossatura nova, que na verdade eles constituem e da qual passam a fazer parte inseparável.
Vale lembrar, ainda, que grande parte da literatura pós-moderna, assim como da arquitetura contemporânea, se serve desse mesmo recurso, o que de forma alguma significa dizer que o resultado seja esteticamente sempre válido, ou consistente.
Mas o mapeamento desses e de outros tantos procedimentos dificilmente daria conta do grau de fusão a que chegaram neste século a pintura e a literatura, particularmente a poesia.
Kandinsky, Klee e Miró são provavelmente os três pintores responsáveis por essa fusão, ou, se formos incrédulos, pelo desejo de fundir poesia e pintura. Todos disseram em algum momento de suas vidas, a seu modo é claro, que desejavam levar a pintura a seu ponto de partida, onde ela ainda não se libertou do gesto. Esse retorno às origens, “em direção a uma violência primitiva” (Miró, A cor dos meus sonhos), pode ser acompanhado ao longo do desenvolvimento da obra de cada um desses pintores.
Klee sonhava com a possibilidade de improvisar livremente sobre a tela, como seu filho Félix fazia ao desenhar ao seu lado. Kandinsky se entrega a uma espécie mais rígida de improvisação, por isso com freqüëncia dava a suas telas o título Composição. Miró, o mias radical na invenção da pintura como grafismo, não cansa de exaltar o primeiro impulso, quase sempre violento, como o momento detonador de todo o processo de criação pictórica.
Por isso ele dá tanta importância às manchas que seus pincéis deixam sobre sua mesa de trabalho, aos objetos que ele recolhe na orla marítima de Palma de Mallorca, onde fez construir seu grande ateliê, aos sacos de supermercado, aos papéis envelhecidos pelo tempo, à lavagem dos seus pincéis diretamente sobre uma tela virgem, no final do dia, ou a um rabisco de criança; ali pode estar o germe do vermelho de um novo quadro, o volume sugestivo para uma nova escultura ou o grafite de um novo desenho. Quanto mais trabalha, mais atento a ninharias, porque ele aprendeu que elas guardam a força e o frescor do nascimento, início de tudo; mais atento também ao erro. Poderiam ser suas as palavras de Leon Battista Alberti, contemporâneo de alguns dos mais importantes artistas do renascimento italiano, e autor do primeiro tratado teórico inteiramente dedicado à pintura: “arte alguma existe que não tenha tido seus inícios em coisas erradas” (p. 140).
Segundo esses três pintores, no princípio era o grafismo, o grafismo sem cor. Assim como podemos dizer que no princípio da dança era o gesto, no princípio da música era o ruído, a fala, talvez o grunhido, no princípio da literatura ou da escrita era a garatuja. Ou seja: no princípio poesia e pintura são uma única e mesma coisa. É ainda Miró que afirma, em seu livro de entrevistas A cor dos meus sonhos: “Não estabeleço nenhuma diferença entre pintura e poesia”, afirmação utilizada com epígrafe do livro Poesia e Pintura - um diálogo em três dimensões, de Valdevino Soares de Oliveira.
O que existe por trás dessa opção pelo ponto de partida é o reconhecimento de que a parte vital do trabalho do pintor - e do poeta -, embora ela não seja a única, se dá na fonte, no gesto intuitivo seminal, que a crítica definiu reiteradamente como “estética pura”. Por isso tantas vezes esses pintores preferiram representar no lugar de uma árvore a casca, da terra uma pedrinha, do céu uma libélula, o sol ou o céu e não a paisagem, a garatuja e o grafite e não a narração.
Procedendo assim, pintor e poeta fazem da pintura e da poesia a amplificação de um nó vital, dessa intuição inicial que cultivada dá vida e humanidade ao inumano, ao insignificante, ao frágil.
Gostaria de terminar citando de memória o que Paul Valéry disse em alguma das páginas de seu Introdução ao método de Leonardo da Vinci: o esplendor de luzes que vem do castelo mais magnífico é tão somente a luz de uma única vela refletida numa infinidade de espelhos espalhados por todos os cômodos.
Klee e Miró, mais do que quaisquer outros pintores, refletiram com seus quadros, aquarelas, desenhos e esculturas, a luz de uma única vela, a que talvez possamos chamar de baça luz da identidade. Mas que por efeito de refração contínua inclui o outro e ganha uma luminosidade que surpreende e inquieta.
Um comentário:
Achei o texto bem interessante, Carlos. Em Amsterdã, a Gerrit Rietveld Academie, uma das principais escolas de Belas Artes da Holanda, criou há alguns anos o bacharelado em Imagem & Linguagem (Beeld & Taal), pensando justamente na formação de artistas que querem trabalhar ou já trabalham com poesia/texto e pintura/gravura/fotografia de maneira indissociável.
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