sábado, 20 de junho de 2009

José María Fonollosa

Um poeta secreto nunca surge repentinamente, quase sempre ele luta na clandestinidade contra a indiferença de seu tempo. O anonimato dessa luta não significa que ele não tenha tentado romper o silêncio ao seu redor, em busca do reconhecimento. Repentina às vezes parece a acolhida de sua obra, mais tarde, quando ele já morreu ou está prestes a morrer. Mas mesmo nesse caso é uma ilusão creditar a uma única pessoa o descobrimento de um poeta desconhecido, muito menos a sua divulgação.

Não foi assim com Fernando Pessoa nem com Constantin Cavafy, dois possíveis pares do autor de Ciudad del hombre: Barcelona, no que se refere à recepção de suas obras. Embora tenha sido comparado a ambos, o barcelonês José María Fonollosa ainda não goza do mesmo reconhecimento sequer na Espanha, onde carrega a pecha de poeta secreto. Se não chega a surpreender que um poeta desse calibre seja ainda hoje um quase desconhecido até mesmo em seu país de origem, é espantoso que enquanto as estridentes vanguardas européias esbanjavam vigor, alguém se dedicasse tão visceralmente a uma poesia toda ela forjada em nome da “maldita e difícil simplicidade”.

Não é fácil conjugar um pessimismo tão extremado, um tão alto grau de despersonalização e uma lucidez tão feroz, com algumas das características mais caras aos projetos poéticos desse século, tais como o ludismo, os jogos de linguagem e a exaustiva recorrência a temas e procedimentos ditos modernos. Fonollosa nega indefinidamente, nega o amor, o sexo, o sonho, a crença no além, na integridade do corpo, da alma, do cérebro, nega a existência de deus, da amizade, do “eu” - embora essa negação última seja a peça chave para a delimitação do contorno preciso de sua personalidade artística.

Várias vezes lendo seus poemas lembrei das telas do pintor Francis Bacon, tal a violência com que ambos expressam seus sentimentos sobre a vida. Com a diferença de que no poeta espanhol a distorção a que o pintor dublinense submete suas figuras dá lugar a um realismo impiedoso - talvez uma nova forma de distorção.

Mas quem é este poeta que em grande parte continua inédito? Uma pequena biografia, publicada numa de suas coletânea, assim resume a vida daquele que contrapôs à Cidade de Deus, de Santo Agostinho, sua Cidade dos Homens:

José María Fonollosa (1922-1991), um dos poucos exemplos de que dispõe a literatura espanhola de poeta secreto, nasceu e morreu em Barcelona. Antes de mudar-se para Cuba em 1951, publicou dois livros que passaram desapercebidos: La sombra de tu luz (1945) e Umbral del silencio (1947). Depois de sua volta em 1961, se concentrou em uma obra à margem das sucessivas estéticas dominantes, ao mesmo tempo que elegeu uma solidão criadora que só tentaria romper ao participar de algum concurso literário, que não ganhou. Em 1990, foi publicado Ciudad del hombre: New York, parte do que depois se chamaria Ciudad del hombre: Barcelona. Fonollosa, desconhecido e desprezado em seu tempo, continua à espera de que a crítica e os leitores o descubram.”

Do total de 236 poemas que compõem o manuscrito de sua última obra, todos hendecassílabos brancos, compostos em absoluto silêncio entre 1947 e 1985, 97 foram publicados em 1990 por Pere Gimferrer; 14 pela pequena editora barcelonesa Bauma, Cuadernos de Poesía, em 1993. A esses 14 poemas somaram-se outros 68, compondo a coletânea Ciudad del hombre: Barcelona, de 1996, pela DVD ediciones, da qual foram extraídos os poemas aqui traduzidos. Ainda restam portanto 57 poemas inéditos.



PASSEIG DE PICASSO


No es mucho lo que tengo y poco es mío.
He llenado de notas mi cerebro
y en innúmeras fichas se amontonan
ideas, expresiones y mil tópicos
no bien clasificados todavía.

Cuando surge un problema o discusión
com rapidez se activan mis archivos
y me sirven -no siempre- las palabras
de aquél que dijo aquello y cuándo y dónde.
Pero de lo que expongo nada es mío.

Cual mi vida que siento como propia
y la tengo, no obstante, en usufructo.

Utilizo a los otros. Mejor dicho
me utilizan los otros cual vehículo
de opiniones antiguas, repetidas
por las generaciones anteriores,
que asimismo expusieron lo aprendido.

Es insignificante lo que es mío.
Tan sólo conclusiones com los datos,
no completos, que albérganse en mi mente
y que pueden, por ello, no ser válidas.
Aun, pues, lo poco mío vale poco.




PASSEIG DE PICASSO


Do pouco que tenho, ainda menos é meu.
Enchi de notas meu cérebro
e em inúmeras fichas se amontoam
idéias, expressões, mil tópicos
ainda não completamente classificados.

Quando surge um problema ou discussão
rapidamente ativo meus arquivos
e me ocorrem -nem sempre- as palavras
de alguém que disse algo e quando e onde.
Mas nada do que exponho é meu.

Também a vida que sinto como minha
apenas em usufruto a tenho.

Sirvo-me dos outros. Melhor dito
servem-se de mim os outros como veículo
de opiniões antigas, repetidas
pelas gerações anteriores,
que ao menos expuseram o aprendido.

O que é meu é insignificante.
Nada além de conclusões com os dados,
incompletos, que pernoitam em minha mente
e que portanto podem não ser válidas.
Por isso, vale tão pouco meu pouco.





RAMBLA DELS ESTUDIS 2


Cada uno habla de sí mismo hasta cuando
aparenta tratar de los demás.

Molesta y desanima ver que todos
se ocupan sólo, egoístas, de su “yo”.

Es como estar rodeado de semáforos
rojos constantemente. Sin luz verde.

No hay modo de que escuchen lo que digo
cuando me acerco para de mí hablarles.




RAMBLA DELS ESTUDIS 2


Todos falam de si próprios, mesmo se
fingem tratar dos outros.

Aborrece e desanima ver que eu e você
egoístas, cuidamos somente de nós mesmos.

É como estar cercado de semáforos
com o sinal vermelho. Nunca o verde.

Como fazer com que escutem o que digo
quando me aproximo para falar de mim?




PS

Esses dois poemas, mais meia dúzia, traduzi e foram publicados no jornal Gazeta do Povo, juntamente com o texto introdutório.

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