sábado, 4 de julho de 2009

Luiz Fernando Carvalho

Em outurbro de 2001, depois de assistir o filme Lavoura Arcaica, na Competição Oficial do Festival de Cinema de Montreal, resolvi ligar para o hotel onde estava hospedado o diretor Luiz Fernando Carvalho. Ele percebeu meu entusiamo e nos encontramos. Um terço da entrevista foi publicado na Gazeta do Povo naquele mesmo ano. O filme, que ainda não havia estreado no Brasil, acabou ganhando o Prêmio de Melhor Contribuição Artística.


CDS Esse é seu primeiro longa. O que você fez antes?
LFC Eu comecei a trabalhar em cinema por volta dos meus 20 anos. Comecei como todo mundo começa, fazendo estágio, depois fui técnico de som, assistente de montagem. Aí eu já estava prestando vestibular, em 1982, pra arquitetura. Entrei na faculdade de arquitetura e comecei a escrever roteiros pra extinta Embrafilme. E por volta de 84, fazendo arquitetura, tive um roteiro aprovado, um roteiro que tinha ganho um prêmio de produção, que cobria a produção do filme de curta metragem.

Esse foi meu primeiro filme, minha primeira direção. Chama-se A espera, um filme inspirado num livro do Roland Barthes chamado Fragmentos de um discurso amoroso.

Coincidentemente também era uma obra literária, como o Lavoura. Esse curta foi muito bem recebido internacionalmente, ganhou o Concha de Ouro, em San Sebastian, na Espanha, ganhou o prêmio do juri em Sainte -Thérèse, num festival que tem aqui no Canadá. No Brasil a gente levou muitos prêmios, em Gramado...

CDS E depois, você foi pra televisão?
LFC Logo depois o cinema perdeu muita força com todas as dificuldades culturais que a gente tem. O problema do país é que a gente não tem uma plataforma cultural estável. Então a Embrafilme fechou e muitos migraram para os comerciais, outros pra televisão. O meu caso foi ir pra televisão. Eu comecei como assistente de direção, também muito novo, lá pelos meus 24 anos. Lá dentro fui me exercitando até começar a dirigir.

CDS Quando a gestação do filme Lavoura Arcaica começou, com a leitura do livro?
LFC Do ponto de vista prático, começou com a leitura do livro. Mas a necessidade de voltar pra uma forma de expressão que me fosse mais particular, que me pudesse possibilitar um exercício maior com a expressão pessoal, já aconteceu no meio do meu penúltimo trabalho na televisão. Foi uma novela do Benedito Rui Barbosa, O rei do gado, uma novela muito boa, que fez muito sucesso. Mas após os primeiros oito capítulos eu tive grande dificuldade em continuar com os outros 200. Os primeiros oito capítulos tinham uma densidade dramática excelente, um texto magnífico. Mas quando houve a passagem pra segunda fase da novela, que era exatamente a estrutura novelística mesmo, teledramatúrgica mais aguda, mais repetitiva, tive muita dificuldade em continuar. Posso dizer que fiquei muito inquieto com isso, me senti inapto como diretor de televisão.

CDS Qual o motivo dessa inaptidão?

LFC O diretor de televisão levanta de manhã, entra no estúdio e dirige qualquer pedaço de papel que lhe dêem na mão. Essa é a função dele. Ele tem que produzir aqueles pãezinhos.

Meu nível de autocrítica era muito grande. Eu chegava em casa e não estava satisfeito com o que fazia. E falava: podia ter feito melhor. Eu não conseguia me superar, talvez por precisar de um espaço maior entre um projeto e outro mesmo dentro da televisão, pra me reciclar, viver meus caminhos. Não sou um diretor que tenha facilidade de fazer qualquer coisa o tempo inteiro. Preciso estar muito identificado com aquilo. Por essa razão fiz tantos trabalhos com o Benedito, porque me identifico com ele. Acho ele um dos grandes criadores da televisão brasileira, um cara que resistiu a grandes mudanças dentro da televisão e que até hoje tem uma autoria, o que é muito difícil. Mas essa autoria eu como diretor estava perdendo.

CDS Foi aí que aconteceu o encontro entre você e a literatura do Raduan?
LFC No final de O rei do gado eu senti essa necessidade de encontrar um texto mais contundente, que não tivesse uma segunda fase de 200 capítulos, alguma coisa que bagunçasse um pouco as minhas regrinhas. Dirijo há mais de 20 anos, você acaba acumulando meia dúzia de regrinhas, e eu não queria me repetir nelas. Eu estava me sentindo mecanizado. Então dei de cara com o Raduan, nessa busca por uma verdade, por um questionamento mais profundo da criação artística. Foi aí que começou o filme Lavoura Arcaica, antes de eu ler o livro. Começou com esse autoquestionamento, com esse desejo de rever meu trabalho. Poderia ter sido outro texto , mas foi o do Raduan.

CDS Por que esse texto, o que ele significa pra você?
LFC Esse texto tinha todas as respostas, perguntas, dúvidas. É um texto que lida de uma forma caleidoscópica com vários questionamentos da vida e da obra. Esse livro é uma porta, ou você entra ou você não entra. Conheço muita gente que parou na primeira página e que depois de dois meses fala, assustado: aquele livro que você me deu mudou a minha vida. Esse livro necessita de uma cumplicidade instantânea com aquele universo ali retratado.

CDS Você parece gostar muito de literatura. De onde essa paixão?
LFC Da faculdade de Arquitetura eu pulei para a faculdade de Letras, porque eu já estava trabalhando em cinema há algum tempo. Já tinha escrito o curta metragem e achei que a faculdade de letras poderia me ajudar um pouco na realização dos roteiros. Logo abandonei o curso porque eu estava trabalhando com muita intensidade, tanto na televisão como no cinema.

A literatura sempre me permeou. Sempre tive uma relação muito forte com a literatura, certamente mais forte do que com a própria cinematografia mundial. Conheço mais autores, já li mais livros do que já vi filmes.

Uso muito literatura, poesia universal, nos meus próprios trabalhos. Num dos testes para o Lavoura trabalhamos em cima de um livro do Julio Cortazar, o Jogo da Amarelinha, com o capítulo 7, o que fala sobre os olhos e a boca.

CDS Fazer um filme a partir de uma obra literária é um pouco diferente do que partir de uma idéia própria, suponho. Como você viveu a experiência de adaptar o romance para a tela?
LFC Eu não chamo de adaptação, adaptar é reduzir. O filme, da forma como eu o senti e ainda o sinto, é uma resposta ao livro, um ato de reação criativa ao livro. Com alguém que se depara com um quadro numa exposição e reage àquela visão. Ele se avizinha do livro da mesma forma como um leitor se aproxima de um livro, entregando os olhos, deixando a imaginação fluir sobre as palavras, sobre os espaços em branco, sobre as entrelinhas.

CDS Esse filme talvez seja um dos melhores leitores que o Raduan Nassar já tenha tido.
LFC Eu já ouvi isso dele. Quando nós brincamos, nós costumamos dizer que o livro é meu e o filme é dele. (Risos) Uma leitura muito bonita que a gente fez foi lá na fazenda, na época da preparação. Lemos todos em voz alta, o elenco inteiro, a família inteira, em torno de uma mesa muito pequenina, ombro a ombro. Cada um com o seu exemplar, lendo. O meu trabalho com o Raduan foi muito próximo. A certa altura do processo eu me senti muito sozinho, então fui convidado por ele pra ir pra São Paulo. Depois ele se ofereceu como um interlocutor para a finalização do filme. Por se tratar de um texto muito especial, nada como o próprio autor pra servir de referência.

CDS Normalmente os cineastas fogem do tom 'literário', 'teatral', 'bíblico' ao adaptarem obras literárias. Você preserva esse tom.
LFC Isso foi completamente intencional. Isso tem a ver com o que eu disse antes, com minha insatisfação com certos excessos de naturalismo. Insatisfação com um tipo de texto que está presente não só na televisão, mas também no teatro que se faz hoje, no cinema, na própria literatura. Essa falta de consistência me incomoda. Eu queria pegar um Shakespeare. Não vejo nenhuma diferença entre Lavoura Arcaica e um Hamlet. Então eu reivindiquei o teatral, não o teatral exagerado, mas o teatral num nível poético, já que a linguagem do livro é mítica, que se aproxima do bíblico. Não é uma linguagem naturalista.

CDS É impossível resumir o filme a meia dúzia de palavras, assim como é impossível reduzir um poema, um quadro, uma música. Mas para Luiz Fernando Carvalho Lavoura Arcaica é um filme sobre...
LFC É um filme sobre o tempo, como se o tempo estivesse sobre qualquer coisa que a gente enumerasse aqui. Ah, é sobre o amor, existe uma coisa que está sobre ele. É sobre a paixão, existe uma coisa que está sobre a paixão. É sobre a família, existe uma coisa que está sobre a família, que é o tempo, como uma entidade, um personagem. Como a palavra final, a última palavra, que está sobre a lei do pai. É o tempo que determina a perspectiva histórica. Tem uma frase do Paul Valery de que eu gosto muito, que eu sempre falava pro fotógrafo, o Walter Carvalho: "como apreender emoções sem o tédio da comunicação".

Como parar em frente a um objeto, a um filme, a uma paisagem, e se emocionar sem que ninguém precise ficar explicando, dando nomes, rotulando. Acho que esse nível de comunicação é só o amor.

CDS Francis Bacon, o pintor irlandês, numa de suas entrevistas, publicadas no Brasil pela Cosac e Naif, discute essa necessidade de não agregar ao objeto artístico uma descrição explicativa.
LFC Se não me engano eu tirei essa frase desse livro de Francis Bacon. O Lavoura se pretende, enquanto linguagem, não ser descritivo, porque o livro não é descritivo. A geografia exterior não é o que mais interessa. O que mais interessa é uma espécie de cartografia dos afetos, um mapa interior dos personagens. Isso interessa mais do que descrever o quarto. Você não sabe muito bem que quarto é aquele da pensão, onde está o André. Você não sabe quantas paredes tem, quantas janelas. Agora, você pode dizer que viu os poros da pele dele.

CDS Quanto tempo duraram as filmagens? E o trabalho com os atores, como foi?
LFC As filmagens duraram primeiramente um período de nove semanas, depois mais duas complementares, porque nos faltou uma parte do dinheiro. Foram onze semanas ao todo, em 1998. O processo com os atores é um caso à parte, mais próximo do processo teatral, do qual eu sentia falta nos meus trabalhos anteriores. É um processo de laboratório, de pesquisa. Nós ficamos por volta de quatro meses retirados numa fazenda, trabalhando a partir de improvisações teatrais sobre o livro. Resumindo muito superficialmente, eu diria que não há praticamente nenhuma marca no filme que não tenha sido retirada das salas de improvisação. Os atores são co-autores do filme, são co-roteiristas do filme. Eles são criadores. Essas improvisações começaram sem texto nenhum, só com sensibilizações. Num determinado momento do processo, distribuí para cada ator que tinha texto no filme as suas respectivas páginas do livro. Ele ia pro quarto e como dever de casa, dever de quarto, adaptava seu próprio texto. Nesse momento ele já era mais personagem do que ator, ele já tinha um conhecimento de dentro pra fora. Assim foi feito com o Selton, que fala muito, com o Raul, com o Leonardo Medeiros. Foi um trabalho conjunto.

CDS
O filme tem 171 minutos, quase três horas. O tema passa por incesto, prostituição, e essa luta asfixiante entre pai e filho (entre tradição e liberdade). As tomadas fechadas de câmera são uma recorrência freqüente. Você sabia de antemão que o filme seria criticado por ser longo demais, pesado demais. Como você responderia a essa crítica?

LFC É um filme sobre o tempo. (Silêncio) Tenho certeza que ele será criticado por isso, mas eu não me importo. Não fiz esse filme pra agradar às prateleiras do mercado.

Esse filho é fruto de uma necessidade muito forte, não só minha, mas de um grupo inteiro. Ele é um filme que com esta duração ajuda também as pessoas a refletirem sobre que modelo é esse que elas estão consumindo hoje tão facilmente, tão repetidamente. Hoje, principalmente os filmes do terceiro mundo, da América Latina, necessitam estar enquadrados dentro de uma cartilha de mercado orientada pela estética comercial americana. Nesse sentido Lavoura é um filme fora de época. Eu me sinto completamente fora de época, parece que estou em 1970, fazendo experiências, ou que estou no leste europeu.

CDS E praticamente, essa duração não pode atrapalhar?
LFC Essa questão da duração pode me atrapalhar na questão comercial do filme, mas ela se faz absolutamente necessária, por se tratar de um texto que mistura alta passionalidade com alta reflexão. Você precisa de um tempo interno dentro do filme pra digerir também aquilo que você está ouvindo, auscultando. Não é um filme de ação e reação. É um filme que tenta privilegiar a imaginação do espectador.

CDS O título do livro do Raduan em francês é La maison de la mémoire, o do filme À la gauche du père. Foi sua a decisão de não usar o título da tradução francesa do livro?
LFC Foi, porque La maison de la mémoire é um título muito Isabel Allende, muito açucarado. Apesar de À la gauche du père também não ser um título ideal, é um bom título, porque ele traz pra luz um significado metafórico do texto, que é a relação de poder, num plano político. A eterna luta entre o poder e a liberdade. A eterna luta dos famintos, dos Andrés, que não têm um lugar na mesa da família social, do Grande Estado. Os excluídos por questões sociais, econômicas, e que estão vivos aí.

CDS
O diálogo entre pai e filho, assim que André é trazido de volta para casa, talvez seja o momento em que a temática do filme se revela mais explicitamente: de um lado a ânsia rebelde pela liberdade, de outro a incomunicabilidade humana. Por mais que ambos se esforcem, eles não chegam a acordo algum. Não há mesmo compreensão possível entre as pessoas?
LFC Uma planta nunca enxerga a outra. (Grande silêncio) Um grupo que se faz a partir de duas pessoas já está gerando um excluído. Não tem jeito, não tem saída. Toda instituição familiar, de trabalho, é obrigada a gerar suas próprias leis, e conseqüentemente a gerar excluídos. Não se adaptar a determinadas leis gera um nível de incomunicabilidade brutal, de exclusão brutal. Nesse sentido acho que o livro e o filme alcançam uma dimensão política e social, certamente metafórica, de altíssimo grau.

Está cheio de André por aí, de famintos de afeto, de comida, de justiça, nas esquinas da minha cidade, nas esquinas de Montreal, em tudo quanto é canto.

Mas voltando a sua pergunta. Acho que o ser humano é incompleto mesmo. A comunicação só se dá através do amor, através das relações de afeto puras.

CDS Essa cena é uma das mais belas, mas como dói.
LFC Isso porque eu não vilanizo ninguém. O pai não é um agente da opressão, não, o pai tem as melhores das intenções, o discurso do pai é agregador. Ele quer juntar o seu rebanho. Agora, as suas regras, as suas leis, o seu bastão não casam muito bem com as glândulas de certos membros da família, glândulas inflamadas.

CDS Houve algum momento mais difícil no processo de elaboração do filme?
LFC Na montagem. Porque ele é um filme de preparação de atores, de filmagem e de montagem. Como trabalhei muito com improvisações, houve um momento na montagem em que eu me pus em xeque muito fortemente. As referências que geralmente chegam são as voltadas para o cinema comercial, para uma narrativa mais fácil. E eu estava sendo guiado por uma proposta de montagem do filme pela sua circularidade, pelos seus planos paralelos de tempo e de memória. Tudo isso mexe com tuas seguranças.

Você sai da sala de montagem, passa em frente a um cinema e tem outra coisa completamente diferente com uma fila dobrando o quarteirão. Você fala, meu Deus, o que que eu estou fazendo?

Mas aí você vai tendo sinais, encontra com pessoas muito especiais que vão vendo passo a passo o filme e vão falando "é isso mesmo, vai por aí, é isso que eu estava precisando ver". E você se sente intensamente recompensado quando aquele momento sutil da montagem, que te deixava vagando no espaço, encontra um correspondente no espectador que vem apertar sua mão, vem te agradecer do fundo do coração. Você sente o quanto ele entrou no filme, o quanto as sutilezas foram lidas, e o quanto elas têm um valor fundamental e necessário nesse mundo de hoje, tão massificado, tão automatizado.

CDS Depois do Festival dos filmes do mundo de Montreal, vocês vão pra onde?
LFC A princípio temos confirmado o festival do Rio, no início de outubro. Depois temos Biarritz, na competição oficial, e Cuba, Havana, também na competição oficial.

CDS É difícil ser cineasta no Brasil. Qual a particularidade do cinema nacional hoje?
LFC O cinema brasileiro evoluíu no plano da captação de recursos, na criação de leis de incentivo, sem dúvida alguma. Porém, se você me permitir, de outro lado há uma involução, porque essas leis que nos auxiliam estão diretamente associadas aos diretores de marketing das grandes empresas. São esses senhores e senhoras que escolhem que filmes devem ser feitos no país, que filmes não devem ser feitos. Evidentemente a gente tem pessoas sensíveis nas grandes empresas, como é o caso da Credicard, por exemplo, que patrocinou praticamente todo o filme. Mas de um modo geral são pessoas muito preocupadas somente com o retorno de mídia, de mercado. Querem o atorzinho da tevê Globo, querem uma historinha que não comprometa a imagem deles enquanto instituição. Obviamente os níveis de crítica e reflexão dos roteiros são mais baixos, para que possam atender a esse imenso gosto médio. Isso é uma involução. Agora, há uma grande criatividade, um grande número de novos diretores jovens fazendo seu primeiro, segundo, terceiro filme, conseguindo espaço, no exterior inclusive. E conseguindo transgredir um pouco essa norma tão ditatorial do mercado, com o próprio dinheiro do mercado.

CDS Você poderia falar um pouco mais sobre essa norma ditatorial do mercado.
LFC Nós temos que ir com carinho, com cuidado, mostrando a necessidade de uma resistência cultural, no terceiro mundo, de um modo geral, na América Latina. É muito covarde esse neocolonialismo americano pro nosso país que é tão jovem. Nós não temos ainda uma estrutura de uma Europa, de uma França. Eles podem receber uma quantidade de filmes americanos, o circuito bambeia mas eles têm uma política de resistência. Nós não temos política de resitência, não temos uma produção consistente pra enfrentar essa invasão. Nesse sentido apoio e aplaudo essas leis que nos possibilitam pelo menos a produção. Agora, outro ponto muito importante é a distribuição. Não adianta só fazer. Você entra no cinema, fica três dias, uma semana e vem um Blockbuster e te rapa dali, e nunca mais ninguém viu teu filme. Quantos filmes brasileiros têm tido esse tipo de trajetória.

Tem que se pensar o cinema como um todo, como um projeto cultural de um país, assim como a dança, as artes plástias, a música, o folclore.

CDS Apesar da ausência desse projeto cultural maior, o país é de uma vivacidade, de uma exuberância cultural invejáveis.
LFC Nós somos um país vivo, em formação, em ebulição. Somos um país talhado para a invenção, fruto de uma grande miscigenação. Estamos nos descobrindo, nos perguntando. Não podemos abrir mão desta invenção de um país novo, de um povo novo, dessa identidade nova, pra consumir um produto importado de terceira categoria. Nesse sentido todas as pessoas que lidam com arte no Brasil são guerrilheiros, resistentes. São pessoas que sobrevivem solitariamente, que passam a maior parte do seu tempo de vida desamparadas, vendo o país privilegiar a cultura dos outros.

CDS Quais são seus cineastas preferidos?
LFC Eu sou muito tocado pelo cinema mudo, pelo cinema soviético do início do século, desde Vertov, Rodtchenko. Agora devo confessar aqui minha paixão pelos italianos, por várias gerações de italianos. Pelo Visconti, pelo Bertolucci, pelo Pasolini. Gosto muito de Godard também. Gostei muito desse último filme dele.

CDS Como é representar o Brasil no exterior? Isso te dá alegria, orgulho?
LFC Isso dá muito orgulho, principalmente no continente americano. Você vem pra brigar mesmo, vem com vontade de dizer que somos algo além dos clichês com que eles nos vestem. Aqui mesmo em Montreal se assustaram muito, no primeiro momento. Como um filme brasileiro que trabalha com reflexão, com texto poético, com texto denso? Um filme que fala de uma mistura com a cultura mediterrânea libanesa? Onde está o samba? Que Brasil é esse?

Na conferência de imprensa falei: vocês não sabem nada, vocês não nos conhecem. Nós somos um país mãe, nós recebemos e recriamos culturas o tempo inteiro, em cada esquina.

Vocês não sabem quem somos nós, vocês estão parecendo o presidente dos Estados Unidos, que acha que a capital do Brasil é Buenos Aires. O Brasil é muito maior do que esses clichezinhos. Isso nos dá muita força, muita coragem.

Nenhum comentário: