Em 1988 Poty Lazzaroto fez uma série de sete desenhos para um calendário encomendado pela Editora Hatier. Esses desenhos foram dedicados à obra de seis escritores brasileiros: Alcântara Machado, Guimarães Rosa, Lima Barreto, Darcy Ribeiro, José Cândido de Carvalho e Gilberto Freire. A escolha desses autores foi do próprio Poty. Inicialmente ele pretendia dedicar um desenho à obra de Dalton Trevisan, que desautorizou educadamente sua inclusão.
.Abrindo o calendário, um sétimo desenho representava um tinteiro, a tampa meio levantada. Dentro dele, personagens de cada um dos romancistas estão mergulhados em sua própria realidade ficcional, alheios uns aos outros. O que os une é o fundo preto, representativo da tinta nanquim, e, naturalmente, o fato de estarem todos confinados no tinteiro. Cabe ao personagem de O Coronel e o Lobisomem a iniciativa de abrir a tampa e pôr a cabeça pra fora, esticando o braço com uma gaiola.
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Esse desenho-síntese ajuda a compreender algumas das particularidades da obra de Poty Lazzaroto. Além de sugerir uma leitura gráfica dos autores, ao aprisionar seus personagens no tinteiro Poty revela a gênese do seu próprio processo criativo. Transferidos do seu contexto literário para o tinteiro, contexto matricial do desenhista, esses personagens dão visibilidade ao momento anterior à criação, quando tudo parece se reduzir ao preto da tinta nanquim. Preto que, no entanto, já está habitado daquilo que anima a mente do artista.
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No caso de Poty, essa intencionalidade latente da tinta é tão grande que parece que desenhar é apenas uma tarefa da mão. É claro que isto não passa de ilusão. Mas ela diz bem de como nele boa parte da germinação se dava mentalmente, por isso ele trabalhava tanto. Assim como sua mão, sua mente não parava nunca.
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Para atingir a expressividade visível, por exemplo, no personagem de Lima Barreto colado à parede de vidro, os braços levantados como se inconformado com a prisão, assim como a dos outros personagens, Poty desenhava e redesenhava. Essa busca permanente de uma espécie particular de perfeição fica visível quando se atenta para o esboço desse desenho.
No verso da mesma folha de papel canson, o que agora vemos como um desenho preliminar representa os mesmos personagens, ainda de forma embrionária, ao lado de um pequeno tinteiro vazio. Olhando a ossatura a que se resume esse desenho é possível pressentir o instante em que ele intuiu que o universo representado devia ser contido pelo tinteiro, como se compreendesse que a presença metonímica do desenhista ao lado dos personagens ficasse enfraquecida. Era em torno deles que essa presença deveria se dar, enfeixando-os. A partir desse momento o desenho ganha em força emblemática. Não é mais da leitura visual das obras de alguns romancistas caros a Poty que se trata, mas da construção desvelada de sua própria obra.
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Mas a essa poderosa capacidade de agregar seu nome a obra ou autor interpretado visualmente, o desenho de Poty alia uma outra qualidade, sem a qual ele poderia ser reduzido a um mero ilustrador: a personalidade de seu traço.
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Se tomássemos o mesmo desenho que abre o calendário de 1989, reeditado em 1993, e o fôssemos decompondo, retirando dele um a um os personagens, de tal forma que o tinteiro vazio ficasse reduzido à linha irregular que inscreve seu contorno, ainda assim se poderia dizer que se trata de um autêntico Poty. Não que o contexto narrativo, muitas vezes criticável na obra do artista paranaense, não seja ele próprio em grande parte estruturado sobre a mesma linha que, isolada, deixa ver mais claramente sua particularidade incisiva.
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Mas seria preciso ir além, nesse processo de desconstrução, e apagar também a tampa do tinteiro, ficando apenas a linha que descreve seu contorno. Abstraídos os personagens e o próprio tinteiro, restaria a abstração vívida de uma linha curva no espaço branco do papel. É essa linha que guarda, mas também revela, de que matéria são feitos os desenhos de Poty Lazzaroto.
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Mais do que às tradicionais penas de metal, a qualidade nervosa de seu traço se deve ao fluxo particularíssimo de sua respiração. Por isso ele fazia questão de “corrigir” os traços que seu executor, Adoaldo Lenzi, reproduzia numa escala monumental, nos painéis de azulejo. Porque ele sabia que embora o executor zelasse pela integridade de sua identidade, era praticamente impossível manter, numa escala monumental, a qualidade de seu traço. Corrigi-los era um atenuante, já que ele próprio não se sentia disposto a fazer como fez Miró, por exemplo, no painel de cerâmica do prédio da Unesco em Paris, no qual o catalão trabalhou pessoalmente.
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Poty não só respirava de acordo com seu fluxo vital, como todo ser humano, mas desenhava engajando esse fluxo em seu traço.
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