1
Há em A Arte Muda da Fuga um
pathos às vezes
melancólico e cru cuja exposição
não gostaria que fosse
exacerbada para além do tom
francamente íntimo dos
poemas. Mesmo nos casos em que
aparentemente busco a
polêmica, mais regurgito minha
parte no diálogo, como
quem responde uma deixa, do que me
ponho em posição
de ataque. Para além desse pathos,
o que me interessa
mais é a polifonia de percepções e
materialidades verbais
de que é feito cada poema. Quando
à melancolia, ela é um
dos vórtices de que sou feito, não
há porque negá-la.
2
A poesia é sempre um arranjo de
redução – de um fato, de
um sentimento ou mesmo de uma
ideia – mais ou menos
evidente, mais ou menos
misterioso, para um corpo verbal
conciso de reverberação abstrata.
Esses arranjos se dão
sob pressão, não exatamente das
circunstâncias fatuais,
mas de uma certa atmosfera que se
cria, especialmente
durante a escrita, e mesmo antes,
inseparável já das
palavras que a vão fundindo ou
desvelando. Nos melhores
casos essa pressão estrutura o
corpo :nal e torna latente
no sentido do poema.
3
Não escrevo tomado por um
sentimento; escrevo tomado
pela ideia de um sentimento. Mesmo
quando as coisas
confluem, tenho sempre um
pressentimento abstrato do
corpo verbal, em direção ao qual
procuro trabalhar, até que
ele vá se estruturando, com essa
miríade de pequenos
mecanismos internos, sem os quais
o poema não vem à
vida, e de onde provém boa parte
do sentido.
4
A ideia de que alguns poemas são
escritos de dentro para
fora, de que a arquitetura interna
antecede, ou mesmo
torna dispensável, a construção
externa, porque assume
para si, como uma vocação
telúrica, a inteira função
estrutural do edifício
semântico-verbal, essa ideia vale para
grupos inteiros de meus poemas, e
mesmo para alguns
poucos poetas cuja vocação irrompe
em meio a um
contexto fortemente restritivo.
5
O poeta é um intuicionado. Mesmo o
pensamento nele vem
em forma de intuição, o que
significa dizer que ele está
sempre lidando com o que não sabe,
o que não vê, o que
não alcança. Disso decorre sua
precariedade, mas também
a força de seu destino.
6
Por mais reflexiva que seja, a
poesia é sempre um convite à
cointuição, a esse indeterminado
que nos escapa, mas que
se dá ao pressentimento da razão
em todos os instantes da
vida, e que não pode ser senão
perfeito e acabado.
7
Um poema não é uma linha reta
entre o que o poeta sente,
ou pensa, e a expressão desse
sentimento ou dessa ideia. É
no percurso da escrita que o
sentimento de mundo se dá,
num espelhamento interno e externo
sem o qual a vida
resultaria num simples artefato de
palavra, desprovido da
animação que lhe é tão cara. Um
poema é um pequeno
percurso de linguagem onde a vida,
misteriosa e
engenhosamente, se dá. A linha
reta, em poesia, é sempre
curva.
8
Não exatamente a palavra usada,
nem a ideia por ela
expressa, mas a ênfase com que ela
é usada é que anima o
tema e vivifica a ideia. Sem essa
ênfase, que só pode
decorrer da identidade particular
de quem escreve, não há
palavra exata nem ideia pertinente
ou mesmo sublime que
salve um poema da palidez
emocional e da opacidade
intelectual. E a ênfase não se
manifesta só, obviamente,
nas metáforas e antíteses, nem
mesmo apenas nos
substantivos fundantes,
francamente expressos, nem nos
adjetivos vocacionados, mas
também, e particularmente,
no subtexto de assonâncias,
aliterações reversas e
espelhadas, nos silêncios súbitos
ou premonitórios que
costuram os versos e as estrofes.
São esses pequenos
recursos que vivificam a vida de
alguns poemas, fazendo-os
respirar como seres vivos.
9
Os poemas de A Arte Muda da Fuga
nasceram de um
vórtice de pressão comum, apesar
da diversidade de temas
que eles tocam. Pressão externa,
naturalmente, do
contexto ao qual estou subjugado,
mas também, e não
menos intensamente, do contexto
semântico interno de
cada poema, instaurado desde o
primeiro verso e que de
alguma forma precisava cobrir com
urgência o
pressentimento de um corpo de
sombra. Eles descendem
praticamente todos desse mesmo
vórtice de pressão e
urgência.
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