Lucas, sua pergunta ficou martelando. Acho que não respondi direito, tento ainda uma vez. Você foi tão sincero e direto, obrigado.
Fazer um autorretrato não impõe dificuldade alguma de ordem psicológica. Difícil é desenhar um rosto alheio, os outros têm expectativas que nenhum pintor consegue satisfazer completamente. Nós pintores não temos expectativa alguma. Tomamos nosso rosto como quem desenha um pêssego, uma garrafa, o gradil do portão. É como desenhar um prato com frutas, já disse Cézanne. No final das contas, se estivermos certos, tudo revelará nossa paisagem interior, como demonstraram tão poeticamente os pintores chineses. Se estivermos errados, estaremos errados para nunca mais, para fora do tempo.
Quando nos desenhamos, emprestamos nossas mãos e olhos para que a velha pergunta seja feita ainda uma vez: quem somos, de onde viemos e para onde estamos indo? Qual o sentido disso tudo, dessa sucessão enganosamente infindável de dias e meses e anos? Os autorretratos são nossa resposta, satisfatória apenas no estrito decurso da pintura ou do desenho. Depois, voltamos a não saber nada. Os autorretratos são lacunas em que a pergunta é mais aguda. Nem antes, nem depois ficamos sabendo direito o que fizemos da vida e o que ela fez conosco. Brincamos de brincar, nos melhores momentos.
Mas há um certo prazer obsessivo em retomar dezenas de vezes o próprio rosto. Rembrandt fez mais de 40 autorretratos. No de1665, quatro anos antes de morrer, ele aparece rindo, como quem ri nos estertores do último ato. Esse riso in extremis, de si mesmo e do mundo, atravessa os séculos e nos atinge como uma bomba. Mais veemente do que o sorriso discreto da Mona Lisa, seu enigma só pode ser decifrado no subsolo de nós mesmos, no reino escuro das raízes, bem longe das palavras.
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