sábado, 15 de dezembro de 2018

mallarmargens 

 revista de poesia e arte contemporânea 


por Marília Kubota - 19/01/2017


Achei dificílimo selecionar seis poemas do livro O gato sem nome, de Carlos Dala Stella. Foi trabalhoso escolher apenas seis peças, entre tanto deslumbramento. Este artista múltiplo, que pinta, desenha, esculpe, recorta e escreve na solidão de seu ateliê, no bucólico bairro de Santa Felicidade, em Curitiba, registra inúmeros episódios de epifania em imagens e escritos. Pelo menos uma vez na vida, os poetas deviam experimentar este tipo de solidão, simultaneamente monástica e erótica, que conduz os sentidos a um fluxo vertiginoso  em que a ordem é a beleza da intimidade.  

Carlos escreve poemas em diários, ou cadernos de artista, nos quais testa projetos de obras que engendrará em telas ou em esculturas de madeira e papel. Ao visitar seu ateliê – e o blog diário de ateliê, em que registra tudo, ou quase tudo que cria, o observador fica tonto com a profusão de ideias e obras.

Mas Carlos é minucioso. Se publicou O gato sem nome em edição caprichada do Caderno Listrado (assinada pelo artesão gráfico Daniel Barbosa), tem ciúmes dos poemas que escreve nos diários. Não quer divulgá-los, a não ser quando publicados em livro, ou no blog. Por isto, cada poema é uma revelação.  

O ateliê de Carlos lembrou a casa de Claudio Seto, já falecido, que morava no bairro de São Brás.  Seto não tinha um ateliê : seu escritório era atulhado de revistas, jornais, livros, zines, publicações de histórias em quadrinhos, arte e cultura japonesa,  ciência, astrologia, futebol, magia, desenhos, idéias para quadros. No quintal abundavam bonsais e pinturas, como saídos de uma cornucópia. Carlos é disciplinado em sua desordem criativa. De sua cornucópia também jorra leite e mel, e como Seto, ele vinga-se dos avaros que só produzem para o imperativo do mercado. 

Para os artistas fora do eixo, felicidade é encontrar uma arte em sintonia com a observação da delicadeza da vida. Uma arte que, por contaminação, reproduz esta delicadeza em obras ímpares.  

O silêncio da escrita

ENGODO

Vida é esse miolo pulsante
limitado sempre pela casca.

Ao contrário do pão e do ovo
a gema que há dentro
está condenada a alimentar o escuro.
A luz latente, circular e bela
em sua substância amarela
não passa de engodo.

Mas o olho interno entrevê
na luz fecundante da única vela
o esplendor vermelho do sol.


ADRIANO LUGARINI, 14

Enquanto risco o carvão na tela virgem
com a ajuda de uma haste de bambu
- antiga vara de pesca de meu pai –
seu Daniel cuida das mudas de girassol
plantadas ao longo do muro branco
entre a porta do ateliê e o portão de ferro.
Paciente, aguardo que a frágil linha,
invisível para quem passa na rua,
cresça amarela, e acenda os olhos
de quem se perde por aqui.


A MARIPOSA

tromba contra o isopor do teto,
contra o prato da lâmpada mais forte,
contra a superfície colorida das telas.
As trombadas seccionam
seu vôo espiralado com golpes
aparentemente inofensivos, indolores.

O som oco se repete dezenas de vezes
mais do que um estalo,
menos do que um choque,
até que o silêncio volta, sem pânico.

Sobre o caderno de desenho aberto,
caminha a mariposa
num treme-treme ritualístico.

Dois olhos nas asas perguntam
se o que fiz de mim nesta segunda-feira
terá algum sentido depois, e qual ?
- dois inquietos olhos negros
vindos do amanhã.

O ensaio da escrita

COMO OS CHINESES

Escrevo meus quadros
às vezes nem é o quadro que me interessa
mas a pipa em que ele se transformou
- vermelha, com sua longa rabiola
chicoteando o azul.

Quando sinto nos dedos
a tensão do fio, o vento das alturas
atuando sobre a estrutura de paina e seda,
reconheço espantado que o voo do quadro
nasce em mim
mas não sei para onde me leva.


NA VOLTA DO ATELIÊ

Mãe e filha
batem bola na rua
em frente de casa.
Param para que eu passe.
Pelo espelho retrovisor vejo
a alegria com que retomam o jogo
no antipó remendado.
Ambas de calça curta.

Que diferença faz
se está nublado e se eu não pintei
nenhum quadro ?


OS OLHOS DO PAI

Tão frágil a borboletinha do fim da tarde
Com seu voo leve de asas helicoidais.

Tão doce o perfume do jasmineiro miúdo
Apenas cai a tarde começa a noite.

Tão imóveis o juvevê sem folhas
A varaneira sem galhos
O pinheiro só tronco e espinhos.

Tão parado o ar
Tão sem estrelas a noite
Sem grilos vaga-lumes besouros
Sem lua.

Três anos que meu pai morreu.

1o. Voo
CARLOS DALA STELLA, poeta-pintor nascido em Curitiba, em 1961. O diálogo entre artes plásticas e escrita permeia tanto seus desenhos e telas, quanto seus painéis de cimento e vidro. Ilustrador de livros, jornais e cartazes, expôs pela primeira vez em Monselice, Itália. É autor de Caçador de Vaga-lumes(poemas), Riachuelo, 266 (contos e crônicas), Bicicletas de Montreal (desenhos e fotos) e O gato sem nome(poemas) e Nanquim (desenhos).


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