sábado, 1 de dezembro de 2018

Posfácio de A ARTE MUDA DA FUGA


Marta Morais da Costa


Este posfácio nasce do silêncio.
Este posfácio nasce da mudez do espanto.
Nasce fadado à incompletude.
Nasce para deixar vazios.
Este posfácio é uma confissão de fraturas e falhas.

1. E fez-se o livro

Livros não apenas contam histórias. Livros são histórias. E este nasceu em uma visita, em tarde de chuva, ao ateliê de Carlos Dala Stella. Gestado inicialmente na cabeça do poeta e de sua editora, ganhou concretude quando matrizes encadernadas e soltas, guardadas em imensa série de cadernos no ateliê, foram sendo abertas e delas jorraram páginas e páginas e páginas de uma escrita abundante, de manuscritos ilustrados, de alta poesia liberta que tomou conta do ambiente, de meus olhos surpresos e encantados, criando uma atmosfera de respeito à arte e de desejo de aventura. Travessos, estes olhos míopes sentiam o apelo daquelas páginas de onde saltavam imagens, desenhos, recortes, colagens.

No mar em preto e branco, indistinguíveis, as volutas de tinta preta criavam simbioses entre o que era forma plástica e forma poética. As linhas dos versos seguiam cursos fluviais caprichosos, misturando-se às imagens ora apresentadas em contornos fechados, ora abertas em cavernas vazadas a insinuar camadas de outras formas e sentidos. O turbilhão em preto e branco engolfava esta leitora de palavras e imagens.

Organizados, etiquetados, imóveis, os grandes cadernos de ateliê, tal uma ilha de tesouros, anunciavam muitos, infinitos poemas que a intenção de apenas um livro era incapaz de conter. Ficavam ali, descansando, à espera de pesquisa, de seleção, de volumes a serem editados. De objeto em objeto, de opulentas e provocativas ilustrações, de poemas e mais poemas e mais poemas, Dala Stella falava de sua fecunda, notívaga e madrugadora produção poética. De incontíveis e incontáveis escritas que se armavam, se derramavam, se orquestravam naquelas páginas manuscritas. Talvez um livro novo em cada caderno.

A fecundidade da obra do poeta esbarrava no projeto contido de apenas um livro. Como selecionar, entre a riqueza de obras artísticas do Louvre, apenas uma? Como selecionar, entre as aves do Pantanal, apenas uma? Como, diante do Universo, afirmar a existência de apenas um planeta habitado? A tarefa de fazer nascer “A arte muda da fuga” pertencia a difíceis – e impossíveis – seleções.

Uma possível saída – e que se revelou produtiva e acertada – foi solicitar ao poeta a escolha da produção recente que, segundo ele, representasse melhor  sua poesia do presente. Como nauta experiente, ele saberia navegar melhor no oceano de sua produção.

Assim se fez: da internet começaram a jorrar em meu computador arquivos e mais arquivos de poemas selecionados por Carlos Dala Stella, de sua produção de apenas dois anos (2014-2015). Eram dezenas e dezenas de textos, com temas, motivos e extensão variados, a pedir tinta, impressão, luz do dia. Em sua autonomia e feliz liberdade, proclamavam, no entanto, elementos comuns, parentescos, liames e conjuntos.

Em busca dos fios a se entrelaçar, a se combinar e enovelar, fui pouco a pouco descobrindo meadas comuns, matizes de cores predominantes, possíveis agrupamentos. Nasceram assim as categorias de amarração dos poemas pré-selecionados pelo autor e novamente selecionados por mim. O volume ganhou sua primeira forma, que a editora aperfeiçoou e enriqueceu, imprimindo-lhe ritmo e visualidade.

A tarefa se transformou em viagem lúdica e prazerosa. O que parecia aridez era antes avidez de leitura. Indagações já traziam implícitas as respostas. Estabelecidos os grupos, definidas suas características, os poemas facilmente deslizavam da tela fria dos arquivos enviados para os ninhos em que se agrupavam, solidários e irmanados. E este volume se fez.


2. Uma poética de vazios e silêncios

O artista plástico revela, nos vazados e nas aberturas, uma multiplicação de planos: camadas sucessivas em que continente e conteúdo se alternam e se contrapõem. Ao enveredar pela “A arte muda da fuga”, o leitor vai confrontar variáveis dessa escolha estética da multiplicação de planos. A primeira constatação é de que Carlos Dala Stella é um poeta fingidor, integrante da constelação de Fernando Pessoa. Não é o único. Não será o último. Suas verdadeiras dores e saberes chegam à luz envoltos no manto diáfano de apurada técnica de escrita. É um poeta de miudezas, de sintaxe sem nós e de imagens de simplicidade e espartana concisão.

Em volutas poéticas que rocambolam de poema a poema, o poeta se desnuda e se autointitula. É uma poesia em que a imagem, aparentemente plana, aos poucos se abre em recortes e vazados por onde o leitor (também um espectador) é atraído para camadas profundas das palavras, dos ritmos e da poderosa visualidade que sedimenta sua obra.

As linhas mestras deste livro e, muito especialmente, seu título explicitam-se nos versos de “A arte muda da fuga”:

nunca o silêncio me foi
indiferente, cada vez mais
interfiro na trama
de seus fios transparentes
quem sabe dessa parceria
um dia não surja
a arte muda da fuga

Surgiu. Materializou-se. Ganhou forma, corpo, estrutura, conexões, tinta e papel. O poeta, não mais sem voz, pode apresentar-se vestido de cenários, de cores, de rimas e qualificar-se para antenar silêncios e mergulhar em vazios. Há uma espécie de metafísica construída pelo desejo de ter acesso aos enigmas do não dito, até para opor-se à vida trepidante, e quase sempre artificial, deste século que nos engolfa. O poeta capacita-se a outro fazer e sentir, como toda a confraria de poetas: “Somos os que ouvem o silêncio universal”, proclama ele em “casulos de sol”.

O “silêncio universal” poderia enganosamente provocar no leitor a compreensão de uma poesia sideral, astrofísica, cósmica. Algo como ouvir estrelas, captar mensagens de outros mundos, antenar-se nas galáxias.  É verdade que, enquanto motivos poéticos, é possível descobrir na sequência de poemas desta seleção boa quantidade de referências verbais a esse campo semântico. No entanto, qual Ulisses resistente ao cantar das sereias, Carlos Dala Stella percebe o espaço sideral, mas somente o aceita e dá sentido quando ele se espelha em partículas terrenas: “grão infinitamente estelar/ em universos de areia”, versifica ele em “finitude estelar”. 
O paralelo universo estelar=grão de areia não é apenas uma comparação, a prima pobre da metáfora. É antes a possibilidade, como afirmava Carl Sagan, de nossa finitude humana ser resultado da “poeira das estrelas”, ou, como este cientista diria menos poeticamente, “A vida é apenas um vislumbre passageiro das maravilhas que existem no Universo.

A correspondência entre sentidos corporais e a decifração da realidade, claras ressonâncias da obra de Rimbaud, colocam na berlinda um dos procedimentos-chave de sua obra: a concretude do mundo que o assalta em todas as horas e em todos os espaços transfigura-se em imagens de neblinas, de sutilezas, de silêncios significativos, de vazios vazados abertos a planos cada vez mais profundos que interrogam os sentidos da vida.

meus olhos fazem a ponte
entre as levezas inúteis
do mundo de dentro
e a linha curva do horizonte  [insignificâncias]

Essas pontes, por vezes bastante sutis, leves e pênseis, povoam a poesia com correspondências inovadoras a juntar, por meio dos liames das palavras, os diferentes planos da vida visível. 

continuo grato por tanta generosidade
mas eu não desejei essas coisas
muito menos elas esperavam ser desejadas
apenas colei nelas o selo do meu espanto [admiração]

A presença da natureza, representada por uma pluralidade de elementos simples – aves, árvores, chuva, sol, estrelas, grão de areia –, beira o bucólico, caso não fosse ampliada em dimensões cósmicas ou em estados de alma. Nesse aspecto, a poesia de Dala Stella bordeja a obra de Eugênio Montale (1896-1981), poeta italiano considerado hermético em linguagem poética e nos sentidos dos poemas. A crítica vê em Montale uma escrita que, servindo-se de fragmentos de tempo aparentemente desimportantes, busca compreender a vida que neles brilha e ganha sentido.

Montale expressa esse estado poético, por exemplo, no poema “Os limões”:

Vê, neste silêncio no qual as coisas
se entregam e parecem prestes
a trair o seu último segredo,
às vezes esperamos
descobrir um defeito da Natureza,
o ponto morto do mundo, o elo que não prende,
o fio a desenredar que enfim nos leve
ao centro de uma verdade.
O olhar perscruta em volta,
a mente indaga concerta desune
em meio ao perfume que se espalha
enquanto o dia enlanguesce.
São os silêncios em que se vê
em cada sombra humana que se afasta
alguma Divindade surpreendida.

O poeta deste livro tem, porém, uma propriedade particular e oposta à do poeta italiano: foge do pessimismo montaleano e prefere articular sua visão da natureza-vida com o espanto, o desconhecido, o “silêncio universal”, porque “há em cada um de nós/ uma coroa de mistérios/ que luz alguma alumia”.

Esse interrogar constante, mesmo sem encontrar respostas definitivas, guarda a riqueza de constatar com espanto as manifestações da natureza. São animais, “bichos”, que, em variedade copiosa, impedem que o poeta se sinta só. E voejam pararus, urubus, sabiás, pintassilgos. E se arrasta a lesma sobre o mármore, a libélula esplende em vitral e a aranha tece, como o tempo. São pequenos animais a significar enigmas da vida e da arte.

A poesia de Dala Stella produzida neste estágio de sua obra artística incorpora uma visão madura aos questionamentos sobre a subjetividade, uma das linhas mestras temáticas de sua escrita: ”seja quem eu for/ sou irremediavelmente o que sou/ e ninguém é comigo!”. Há uma aceitação tranquila da singularidade entre os mortais e uma inquirição constante da individualidade em face do universo, mesmo que, em momentos de desilusão e de uma perspectiva negativa, seus versos considerem os seres humanos tal qual “cometas kamikazes”, envoltos em “um miasma/ de vaidades”, fazendo ecoar nesses versos a crueza de um Augusto dos Anjos.

Mas são raros esses lampejos de acerba crítica à conduta humana. De um modo geral, isolado em seu casulo de verdes e cantos, entregue à arte, ao espanto, à aproximação vital da natureza exuberante (“à indiferença majestática da natureza”), em meio a “telas, esculturas, recortes, esboços” e rimas, o poeta constrói seu ninho artístico e existencial, no meio do qual, feito “água-viva”, se movimenta.

A máscara da calma maturidade não evita, entretanto, a consciência do corpo frágil e do tempo poderoso que “me apaga com afagos” e, no mesmo influxo,  o obriga à aflição da criação artística. Tempo que, com “indiferença exuberante”, age como “um deus que não existe/ mas está em todo lugar”.

Se escrevi “calma maturidade”, não elimino de minha percepção –  seguindo os versos do poeta – toda uma angústia e perturbação interna, uma desacomodação que está na origem de toda arte. Integra intrinsecamente essa madureza “aquilo em cada um de nós/ que nunca virá à luz do dia”. Contradições que não impedem que, descobrindo as arestas de uma secreta e indefinível parte de si, faça o poeta supor que “se eu estivesse aqui/ estaria chovendo passarinhos mortos/ sobre minha alegria”. Entre a sintonia com a natureza, a arte de interrogar silêncios e a descoberta de faces desassossegadas de sua interioridade, o poeta derrama versos em busca da arte e de si mesmo.

Para quem se alimenta da fome, os versos se derramam em rios, as ideias se expressam em camadas e em desvãos, a busca de respostas para “mundos de ignorância e ausência” produzem no leitor efeitos desafiadores da sensibilidade e da compreensão.

Essa busca dos sentidos do mundo e do tempo, esse indagar os vazios e os silêncios como repositórios de respostas e de beleza acabam por conferir à poesia de Carlos Dala Stella a marca indelével de uma poética de inquirição, de comunhão estelar, de denúncia dos desacertos do homem em sociedade, de incompletudes pessoais e sociais. Constrói, à semelhança de Bach, uma arte como fuga, isto é, uma composição polifônica no contraponto de conjuntos temáticos.

E tal como em seu poema “silêncio”, chego ao final deste prefácio replicando seus versos: “o bom de pensar/ é que depois/ vem o silêncio”.

Marta Morais da Costa é crítica literária, escritora e professora.
É doutora em literatura pela Universidade de São Paulo.


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