Marta Morais da Costa
Este posfácio nasce do silêncio.
Este posfácio nasce da mudez do
espanto.
Nasce fadado à incompletude.
Nasce para deixar vazios.
Este posfácio é uma confissão de
fraturas e falhas.
1. E fez-se o livro
Livros não apenas contam histórias.
Livros são histórias. E este nasceu em uma visita, em tarde de chuva, ao ateliê
de Carlos Dala Stella. Gestado inicialmente na cabeça do poeta e de sua
editora, ganhou concretude quando matrizes encadernadas e soltas, guardadas em
imensa série de cadernos no ateliê, foram sendo abertas e delas jorraram
páginas e páginas e páginas de uma escrita abundante, de manuscritos
ilustrados, de alta poesia liberta que tomou conta do ambiente, de meus olhos
surpresos e encantados, criando uma atmosfera de respeito à arte e de desejo de
aventura. Travessos, estes olhos míopes sentiam o apelo daquelas páginas de
onde saltavam imagens, desenhos, recortes, colagens.
No mar em preto e branco, indistinguíveis, as volutas de
tinta preta criavam simbioses entre o que era forma plástica e forma poética.
As linhas dos versos seguiam cursos fluviais caprichosos, misturando-se às
imagens ora apresentadas em contornos fechados, ora abertas em cavernas vazadas
a insinuar camadas de outras formas e sentidos. O turbilhão em preto e branco
engolfava esta leitora de palavras e imagens.
Organizados, etiquetados, imóveis, os grandes cadernos de
ateliê, tal uma ilha de tesouros, anunciavam muitos, infinitos poemas que a
intenção de apenas um livro era incapaz de conter. Ficavam ali, descansando, à
espera de pesquisa, de seleção, de volumes a serem editados. De objeto em
objeto, de opulentas e provocativas ilustrações, de poemas e mais poemas e mais
poemas, Dala Stella falava de sua fecunda, notívaga e madrugadora produção
poética. De incontíveis e incontáveis escritas que se armavam, se derramavam,
se orquestravam naquelas páginas manuscritas. Talvez um livro novo em cada
caderno.
A fecundidade da obra do poeta esbarrava no projeto contido
de apenas um livro. Como selecionar, entre a riqueza de obras artísticas do
Louvre, apenas uma? Como selecionar, entre as aves do Pantanal, apenas uma?
Como, diante do Universo, afirmar a existência de apenas um planeta habitado? A
tarefa de fazer nascer “A arte muda da fuga” pertencia a difíceis – e
impossíveis – seleções.
Uma possível saída – e que
se revelou produtiva e acertada – foi solicitar ao poeta a escolha da produção
recente que, segundo ele, representasse melhor
sua poesia do presente. Como nauta experiente, ele saberia navegar
melhor no oceano de sua produção.
Assim se fez: da internet começaram a jorrar em meu
computador arquivos e mais arquivos de poemas selecionados por Carlos Dala
Stella, de sua produção de apenas dois anos (2014-2015). Eram dezenas e dezenas
de textos, com temas, motivos e extensão variados, a pedir tinta, impressão,
luz do dia. Em sua autonomia e feliz liberdade, proclamavam, no entanto,
elementos comuns, parentescos, liames e conjuntos.
Em busca dos fios a se entrelaçar, a se combinar e enovelar,
fui pouco a pouco descobrindo meadas comuns, matizes de cores predominantes,
possíveis agrupamentos. Nasceram assim as categorias de amarração dos poemas
pré-selecionados pelo autor e novamente selecionados por mim. O volume ganhou
sua primeira forma, que a editora aperfeiçoou e enriqueceu, imprimindo-lhe
ritmo e visualidade.
A tarefa se transformou em viagem lúdica e prazerosa. O que
parecia aridez era antes avidez de leitura. Indagações já traziam implícitas as
respostas. Estabelecidos os grupos, definidas suas características, os poemas
facilmente deslizavam da tela fria dos arquivos enviados para os ninhos em que
se agrupavam, solidários e irmanados. E este volume se fez.
2. Uma poética de vazios e silêncios
O artista plástico revela, nos vazados e nas aberturas, uma
multiplicação de planos: camadas sucessivas em que continente e conteúdo se
alternam e se contrapõem. Ao enveredar pela “A arte muda da fuga”, o leitor vai
confrontar variáveis dessa escolha estética da multiplicação de planos. A
primeira constatação é de que Carlos Dala Stella é um poeta fingidor,
integrante da constelação de Fernando Pessoa. Não é o único. Não será o último.
Suas verdadeiras dores e saberes chegam à luz envoltos no manto diáfano de
apurada técnica de escrita. É um poeta de miudezas, de sintaxe sem nós e de
imagens de simplicidade e espartana concisão.
Em volutas poéticas que rocambolam de poema a poema, o poeta
se desnuda e se autointitula. É uma poesia em que a imagem, aparentemente
plana, aos poucos se abre em recortes e vazados por onde o leitor (também um
espectador) é atraído para camadas profundas das palavras, dos ritmos e da
poderosa visualidade que sedimenta sua obra.
As linhas mestras deste livro e, muito especialmente, seu
título explicitam-se nos versos de “A arte muda da fuga”:
nunca o silêncio
me foi
indiferente, cada
vez mais
interfiro na
trama
de seus fios
transparentes
quem sabe dessa
parceria
um dia não surja
a arte muda da
fuga
Surgiu. Materializou-se. Ganhou forma, corpo, estrutura,
conexões, tinta e papel. O poeta, não mais sem voz, pode apresentar-se vestido
de cenários, de cores, de rimas e qualificar-se para antenar silêncios e
mergulhar em vazios. Há uma espécie de metafísica construída pelo desejo de ter
acesso aos enigmas do não dito, até para opor-se à vida trepidante, e quase
sempre artificial, deste século que nos engolfa. O poeta capacita-se a outro
fazer e sentir, como toda a confraria de poetas: “Somos os que ouvem o silêncio
universal”, proclama ele em “casulos de sol”.
O “silêncio universal” poderia enganosamente provocar no
leitor a compreensão de uma poesia sideral, astrofísica, cósmica. Algo como
ouvir estrelas, captar mensagens de outros mundos, antenar-se nas galáxias. É verdade que, enquanto motivos poéticos, é
possível descobrir na sequência de poemas desta seleção boa quantidade de
referências verbais a esse campo semântico. No entanto, qual Ulisses resistente
ao cantar das sereias, Carlos Dala Stella percebe o espaço sideral, mas somente o aceita e dá sentido quando ele se espelha em
partículas terrenas: “grão infinitamente estelar/ em universos de areia”,
versifica ele em “finitude estelar”.
O paralelo universo estelar=grão de
areia não é apenas uma comparação, a prima pobre da metáfora. É antes a
possibilidade, como afirmava Carl Sagan, de nossa finitude humana ser resultado da “poeira das estrelas”, ou, como este
cientista diria menos poeticamente, “A vida é apenas um vislumbre passageiro
das maravilhas que existem no Universo.”
A correspondência entre sentidos corporais e a decifração da
realidade, claras ressonâncias da obra de Rimbaud, colocam na berlinda um dos
procedimentos-chave de sua obra: a concretude do mundo que o assalta em todas
as horas e em todos os espaços transfigura-se em imagens de neblinas, de
sutilezas, de silêncios significativos, de vazios vazados abertos a planos cada
vez mais profundos que interrogam os sentidos da vida.
meus olhos fazem a ponte
entre as levezas inúteis
do mundo de dentro
e a linha curva do horizonte
[insignificâncias]
Essas pontes, por vezes
bastante sutis, leves e pênseis, povoam a poesia com correspondências
inovadoras a juntar, por meio dos liames das palavras, os diferentes planos da
vida visível.
continuo grato por tanta generosidade
mas eu não desejei essas coisas
muito menos elas esperavam ser desejadas
apenas colei nelas o selo do meu espanto [admiração]
A presença da natureza, representada por uma pluralidade de
elementos simples – aves, árvores, chuva, sol, estrelas, grão de areia –, beira
o bucólico, caso não fosse ampliada em dimensões cósmicas ou em estados de
alma. Nesse aspecto, a poesia de Dala Stella bordeja a obra de Eugênio Montale
(1896-1981), poeta italiano considerado hermético em linguagem poética e nos
sentidos dos poemas. A crítica vê em Montale uma escrita que, servindo-se de
fragmentos de tempo aparentemente desimportantes, busca compreender a vida que
neles brilha e ganha sentido.
Montale expressa esse estado poético, por exemplo, no poema
“Os limões”:
Vê, neste silêncio no qual as coisas
se entregam e parecem prestes
a trair o seu último segredo,
às vezes esperamos
descobrir um defeito da Natureza,
o ponto morto do mundo, o elo que não prende,
o fio a desenredar que enfim nos leve
ao centro de uma verdade.
O olhar perscruta em volta,
a mente indaga concerta desune
em meio ao perfume que se espalha
enquanto o dia enlanguesce.
São os silêncios em que se vê
em cada sombra humana que se afasta
alguma Divindade surpreendida.
O poeta deste livro tem, porém, uma propriedade particular e
oposta à do poeta italiano: foge do pessimismo montaleano e prefere articular
sua visão da natureza-vida com o espanto, o desconhecido, o “silêncio
universal”, porque “há em cada um de nós/ uma coroa de mistérios/ que luz
alguma alumia”.
Esse interrogar constante, mesmo sem encontrar respostas
definitivas, guarda a riqueza de constatar com espanto as manifestações da
natureza. São animais, “bichos”, que, em variedade copiosa, impedem que o poeta
se sinta só. E voejam pararus, urubus, sabiás, pintassilgos. E se arrasta a
lesma sobre o mármore, a libélula esplende em vitral e a aranha tece, como o
tempo. São pequenos animais a significar enigmas da vida e da arte.
A poesia de Dala Stella produzida neste estágio de sua obra
artística incorpora uma visão madura aos questionamentos sobre a subjetividade,
uma das linhas mestras temáticas de sua escrita: ”seja quem eu for/ sou
irremediavelmente o que sou/ e ninguém é comigo!”. Há uma aceitação tranquila
da singularidade entre os mortais e uma inquirição constante da individualidade
em face do universo, mesmo que, em momentos de desilusão e de uma perspectiva
negativa, seus versos considerem os seres humanos tal qual “cometas kamikazes”,
envoltos em “um miasma/ de vaidades”, fazendo ecoar nesses versos a crueza de
um Augusto dos Anjos.
Mas são raros esses lampejos de acerba crítica à conduta
humana. De um modo geral, isolado em seu casulo de verdes e cantos, entregue à
arte, ao espanto, à aproximação vital da natureza exuberante (“à indiferença
majestática da natureza”), em meio a “telas, esculturas, recortes, esboços” e
rimas, o poeta constrói seu ninho artístico e existencial, no meio do qual,
feito “água-viva”, se movimenta.
A máscara da calma maturidade não evita, entretanto, a
consciência do corpo frágil e do tempo poderoso que “me apaga com afagos” e, no
mesmo influxo, o obriga à aflição da
criação artística. Tempo que, com “indiferença exuberante”, age como “um deus que
não existe/ mas está em todo lugar”.
Se escrevi “calma maturidade”, não elimino de minha percepção
– seguindo os versos do poeta – toda uma
angústia e perturbação interna, uma desacomodação que está na origem de toda
arte. Integra intrinsecamente essa madureza “aquilo em cada um de nós/ que nunca
virá à luz do dia”. Contradições que não impedem que, descobrindo as arestas de
uma secreta e indefinível parte de si, faça o poeta supor que “se eu estivesse
aqui/ estaria chovendo passarinhos mortos/ sobre minha alegria”. Entre a
sintonia com a natureza, a arte de interrogar silêncios e a descoberta de faces
desassossegadas de sua interioridade, o poeta derrama versos em busca da arte e
de si mesmo.
Para quem se alimenta da
fome, os versos se derramam em rios, as ideias se expressam em camadas e em desvãos,
a busca de respostas para “mundos de ignorância e ausência” produzem no leitor
efeitos desafiadores da sensibilidade e da compreensão.
Essa busca dos sentidos do mundo e do tempo, esse indagar os
vazios e os silêncios como repositórios de respostas e de beleza acabam por
conferir à poesia de Carlos Dala Stella a marca indelével de uma poética de
inquirição, de comunhão estelar, de denúncia dos desacertos do homem em
sociedade, de incompletudes pessoais e sociais. Constrói, à semelhança de Bach,
uma arte como fuga, isto é, uma composição polifônica no contraponto de
conjuntos temáticos.
E tal como em seu poema “silêncio”, chego ao final deste
prefácio replicando seus versos: “o bom de pensar/ é que depois/ vem o
silêncio”.
Marta
Morais da Costa é crítica literária,
escritora e professora.
É doutora em literatura pela Universidade de São Paulo.
É doutora em literatura pela Universidade de São Paulo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário