sexta-feira, 8 de maio de 2009

O caçador de vagalumes

O poeta tranqüilo
Miguel Sanches Neto
Gazeta do Povo, 24.05.99
 
Primeiro livro de Carlos Dala Stella é a depuração de dez anos de silenciosa atividade poética

Sendo um artista plástico que transita pela literatura (ou vice-versa), Carlos Dala Stella não deixa que haja cisão em sua identidade. Ambas as atividades estão irmanadas e formam um projeto maior que é dar consistência imaginária a uma territorialidade pessoal. Há, portanto, uma coesão entre o seu trabalho plástico e os seus poemas, coesão que pode ser encontrada nos aspectos visuais de O Caçador de Vaga-lumes (Editora UEPG, 1998) - sua primeira reunião poética: o artista investe na materialidade dos versos, que ganham sempre contornos brandos e uma certa regularidade métrica que faz com que os poemas ocupem o papel de forma plasticamente agradvel. Sem ter um número fixo de sílabas, os seus versos guardam certa simetria, distinguindo-se por um arredondamento de linhas. Com isso, os poemas ganham suavidade visual e rítmica sem cair em um circuito fechado.

É justamente desse acabamento racional (cabralino) que os seus textos fogem, apostando em uma abertura semântica obtida através de um verbo intermitente. O que explica a opção pelos dísticos.

Os dísticos operam segmentações dentro dos poemas, dando-lhes certa autonomia em relação ao todo, embora haja um fio condutor, em alguns casos quase imperceptível, que costura com pontos largos o módulo. Se por um lado eles não estão controladamente encadeados, não há também uma total desarticulação. O sentido localiza-se em uma fronteira semovente. Poderíamos dizer que existe unidade dentro da diversidade de situações. Tal característica exige do leitor uma disponibilidade para se deixar levar por poemas que se querem como condutos, como espaço de passagem. Isto é válido também para o livro como um todo. Não se pode percorrê-lo aos saltos, mas perdendo-se em trilhas ondulantes. Talvez este realmente seja o ponto fundamental na definição do perfil de leitor que a coletânea exige. Ele deve ser um itinerante, que lê como quem caminha, observando as mudanças da paisagem e das situações. Evitando as disparadas e as circunvoluções, o seu ritmo é o da caminhada tranqüila.

Os dísticos (apresentados isoladamente ou em conjunto) não só facultam a movimentação como também criam uma estrutura binária em que se alternam o claro e o escuro, o silêncio e o verbo, o vazio e o cheio, o comum e o inusitado. É do choque destes contrários que nascem poemas marcadamente não-enfáticos, caracterizados por uma freqüência sonora baixa. Trata-se, na verdade, de uma espécie de infra-som, de uma poesia despida de pretensões grandiloqüentes.

Assim, a palavra é, para Dala Stella, como o discreto vaga-lume, com suas combustões controladas que formam uma pequena e rasteira constelação: alternância de luz e sombra a conduzir o leitor através de sinais isolados uns dos outros. Se eles não formam uma linha contínua, uma trajetória retilínea, não quer dizer que sejam carentes de configuração. Sua trajetória ziguezagueante, apesar de toda a fragmentação, desenha com pontilhados um mapa.

Sendo uma imagem do próprio estilo destes dísticos, os vaga-lumes funcionam também como móvel biográfico, ligação do poeta com sua infância passada no bairro agrícola de Santa Felicidade (Curitiba), marcando dessa forma a adesão a um espaço carregado de simbologia. O poeta de agora é o menino que outrora caçava pirilampos. Daí a poesia ser uma restauração deste território em que imperava um olhar desarmado sobre a realidade. Dala Stella habita esta dimensão para resgatar a essencialidade das coisas. Nesse sentido, a caminhada pelas ruas de Santa Felicidade é uma viagem no tempo, através da convocação dos elementos mitopóeticos: os animais arquetípicos (pássaros, borboletas, peixes), os rios, as árvores, as ruas de outrora...

Revendo pela memória a infância, ele termina um dos poemas com uma imagem muito significativa: "a casca da cigarra, seca no palanque da cerca". É esta cerca o limite que deve ser transposto rumo ao passado. A presença de uma casca de cigarra chama atenção para o seu canto e, por extensão, para toda a infância, que súbito virou um oco, uma ausência. Mas a infância não está irremediavelmente perdida. Da mesma forma que as larvas das cigarras permanecem vários anos no solo, alimentando-se das raízes das plantas, a idade seminal sobrevive nos subterrâneos da alma, podendo a qualquer momento voltar a cantar. Rebelando-se contra uma visão pessimista da vida, o poeta encontra na disponibilidade lírica para apreciar as coisas uma ponte que o liga a este país íntimo, reabitável através da poesia.

Mas o pirilampo também é a personificação do pequeno, do pouco expressivo, marca registrada do olhar do poeta. O primeiro poema centra-se justamente no gesto quase zero, numa referência a esta poesia de infra-som. O grau quase zero do poético é obtido, no nível formal, mediante a valorização de versos brancos (só raramente os seus poemas são rimados) em que se busca não chamar atenção. Isto está exemplarmente expresso num dos poemas:

antes, quando a poesia me invadia
era aquela eufórica alegria

agora me largo quieto
sentado à beira do rio

transcorrer em silêncio a água
e a poesia pelos meandros

O poeta apresenta-nos uma passagem para a madureza. Ainda no período de imaturidade, a poesia é comparada ao deslumbramento, ao entusiasmo. Note-se que no primeiro dístico, quando é recordado este tempo, há o uso de rimas soantes, ocorrendo uma intensificação sonora através da rima interna:

antes, quando a poesia me invadia
era aquela eufórica alegria

O poema, visto como uma festa de som, como estardalhaço, torna-se, com a maturidade, um movimento silencioso de águas. O verbo ganha então uma condição tranqüila, subaquática, ligando a poesia à figura do peixe, símbolo da alegria discreta, contida, suave, que vem da própria experiência da dor:

o incompleto se curva inicialmente
sobre o ventre de si mesmo

como a dor que leva à doçura
não ignora a alegria dos peixes

submete-se ao fluxo das correntes
onde há suavidade, silêncio

Aqui está o centro da visão do poeta. Ele não busca apenas recuperar nostalgicamente o que se perdeu, mas fecundar as dores da existência mediante o cultivo de um prazer brando. Na aceitação do vazio (origem do poema e da vida) fica definida a luta contra o desespero. Isso, num país marcado pela falta de motivos para a alegria, faz com que o seu texto tenha uma significação subversiva.

Se o vaga-lume é uma metáfora da forma do poema, o peixe é uma referência ao seu conteúdo. Não há um sentido seguro, disponível ao leitor. O sentido, assim como os peixes, vive em movimento nas entranhas da água. E só pode ser possuído quando transformado em matéria inerte:

ao invés de terrível espadanar
curva-se à mão a espinha

desfaz-se em letras viscosas
grudando os dedos como barbatanas

a flacidez do pescado abranda
o impudor de seu contorno

fechada, a boca não impede
o odor de nascer fora d'água

nem os olhos abertos guardam
como reserva o mar perdido
 
O sentido só existe enquanto coisa viva que pode ser vislumbrada à distância, mas que jamais pode ser dissecada. O peixe é, portanto, a metáfora deste sentido esquivo que rouba a isca até do pescador mais prevenido.

Dentre os peixes, a carpa tem um lugar especial neste bestiário poético. Ela é a representação da serenidade, mas também o eixo mítico de uma poética que não se debate contra as coisas inevitáveis. Esta simbologia é cara aos orientais, com quem Carlos Dala Stella dialoga principalmente no que diz respeito à aceitação da finitude humana e ao verbo não-enfático: "a carpa, a partir do momento em que se encontra em cima da tábua da cozinha, prestes a ser retalhada, permanece imóvel - e assim é que o homem ideal deve proceder diante da morte inevitável" (Chevalier, Dicionário de Símbolos).

É através de uma viagem ao bosque das imagens que o leitor vai se incorporando a uma reflexão, que nem sempre se passa pelos domínios do intelecto ("O pensamento procede por imagens"), sobre a condição humana e a urgência de se desfrutar da vida sem se entregar ao desânimo, com disponibilidade para alegrar-se suavemente com as mínimas coisas do chão da existência. Numa época de simulacros, a poesia de Dala Stella ganha pela sinceridade com que arrebata o leitor.


Tudo isso é plasmado em poemas que se distinguem por uma modernidade sóbria, sem os deslumbramentos verbais, sem as citações exaustivas e as brincadeirinhas de vanguarda. Trata-se de um poeta que não se esforça adolescentemente para parecer moderno, como se tornou praxe em nossa poesia mais jovem. Ele não escreve investindo na pose de poeta, mas para dar respostas à sua condição de ser humano que se dilacera diante de um mundo violento e que busca fundar um espaço poético em que o leitor encontre conforto. Este seu território imaginário desde já passa a fazer parte de nossa geografia.

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Contenção poética em busca do silêncio
Paulo César Ruiz
Especial para o Anexo/A Notícia



As editoras universitárias vêm publicando quase que às escondidas livros cuja qualidade extrapola o nível mediano tão em voga no nosso mercado editorial. "O Caçador de Vaga-lumes" (Editora da Universidade Estadual de Ponta Grossa), do artista plástico, cronista e poeta Carlos Dala Stella, é o exemplo típico. Exalando fragrância de flor tranqüila, seus poemas possuem alto grau de maturação estética e existencial. Apesar da ourivesaria voraz, o autor parece ter se banhado não só no tanque do velho Bashô, mas em muita estrada e livros e limas. Do cronista que escreve para o jornal "Gazeta do Povo", de Curitiba, e do artista plástico que criou, entre outras coisas, capas de livros para grandes editoras brasileiras como a do escritor catarinense Cristóvão Tezza (Editora Record), Dala Stella já era conhecido. Agora, o poeta, o sensível e elíptico poeta, ainda era desconhecido por grande parte do público fora de Curitiba.

Os poemas de Dala Stella têm uma contenção que beira à insanidade, é uma conspiração sígnica que busca, acreditem, o silêncio. Seus textos fogem do barroco, do descritivo, eles querem o minimal, a intimidade, o risco que o vaga-lume deixa no papel quando, criança sapeca, o passamos sobre a superfície da roupa escura. Um dos exemplos entre muitos que se pega a esmo no livro: "escuridão terrificante/ antecedia a manhã/ mas acolhedora/ o canto dos galos/ latidos perdidos na noite/ silêncio". Nesse pequeno exemplo dá pra sentir o pulsar da poética de Dala Stella. As elipses economizando o caminho para a fruição e a miscigenação de poéticas já consagradas, além do ritmo que alucina. Seus poemas têm a síntese de um curta-metragem, como por exemplo no final desse mesmo acima citado: "no fogão à lenha/ estalidos secos/ o corpo na cama/ capaz de prazer, casca/ de cigarra, seca/ no palanque da cerca". Elementos rurais à la Manoel de Barros (cigarra seca) se mesclando com temas e situações de uma urbanidade urgente como "o corpo capaz de prazer", e as eternas dúvidas cotidianas da solidão baldia de quem vive entre progressos e globalizações.

Como artista plástico, Carlos não poderia deixar de construir suas idéias através de colagens e, ainda, abusar ­ no bom sentido, é claro ­ de contrastes. E aqui, mais para a fotografia em preto e branco: "de grafia preta dos corvos/ o desejo de riscar o branco/ certo modo de escrever/ lúdico e consciente". Há também o embate entre energias conflitantes, a exasperação diante do inexorável. Aliás, essa é uma das marcas que dão consistência aos poemas desse "caçador": "crianças ao pé do corpo/ da indigência cultivam a flor".

Outra característica marcante nesses poemas é a presença do universo oriental, zen-budista, em que, inclusive, alivia a força do paradoxo, uma vez que para essa (anti) religião não há dualidades estanques ­ bem/mal, bonito/feio ­, mas nuances, interligações, em que o mais singelo grão de areia ilumina como uma estrela. O título do livro também dá mostras dessa iluminada "inutilidade" budista (que para nós ocidentais, já com os cérebros embrutecidos, pouco significa, pois não dá grana), que carrega no seu cerne toda a sabedoria milenar de quem escolheu simplesmente fazer da vida uma arte. Esse zen, aliás, é uma necessidade de algumas gerações de escritores paranaenses, de Londrina a Curitiba, de Ponta Grossa a Assaí, em que despontam, entre outros, autores de peso como Leminski, Wilson Bueno, Rodrigo Garcia Lopes, Maurício de Arruda Mendonça.

Essas minúcias guardam em si uma grandiosidade em que a sentença mínima, qual haicai, que explode, cápsula atômica, e fica quase do tamanho da China: "enquanto durmo ou me calo/ alimento a morte com raízes". Ou neste outro desenho virtual e conclusivo, com direito a incenso e tudo: "sempre precária a serenidade/ na casa de um florista".

O texto que dá o título à obra é, curiosamente, de prosa. Diligente, um pai caçador de vaga-lumes (eles existem) conta para seu filho, numa conversa que precede uma tempestade, que, quando criança, caçou um vaga-lume africano. E vocês sabem que tudo que é africano carrega aquela aura de grandioso, selvagem, pavoroso e, claro, mágico. E o filho acredita ter visto também um destes vaga-lumes gigantes (de meio metro) no jardim de sua casa e corre para contar a história à mãe, que está estudando no Uruguai. "A luz dele parece uma pincelada verde que não acaba nunca. Mãe, eu quase peguei ele. Agora tenho de que ir, eu vou fazer uma rede maior e vou pegar ele pra te mostrar quando você voltar".

Apesar de Carlos Dala Stella ser um grande caçador de vaga-lumes, ele tem o estranho hábito de, no escuro, chorar na varanda. Coisas da poesia. Agora, o difícil (impossível?) é encontrar nas livrarias comerciais livros de autores outsiders como o desse "O Caçador de Vaga-lumes". Se o leitor soubesse como eles ajudam a curar o tédio provocado pelas mesmices televisivas e as sempre óbvias biografias de estrelas que entopem as prateleiras das livrarias, bronquearia.

Artista plástico Carlos Dala Stella surpreende com o volume de poemas "O Caçador de Vaga-lumes"

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