quinta-feira, 27 de dezembro de 2018

PAULO LEMINSKI / da série Retratos

1 O processo de apreender um rosto, em mim, se dá durante e não antes do desenho. Quanto mais desenho, mais compreendo, ou tenho a ilusão de compreender, determinado olhar, mais apreendo um determinado sorriso, ambíguo e discreto. Como se o traço corresse a par e passo com o pensamento, separados, mas em sincronia. Por isso faço pequenas sequências de um ‘retratado’, para me dar tempo. O primeiro normalmente sai mais espontâneo, contradizendo a tensão inicial, o último mais sintético. Mas não há uma regra fixa.

2 No primeiro desenho a gente quer dar conta de todo o rosto, esquecendo que apenas alguns de seus traços lhe conferem a marca simplificada com que ele é visto. O bigode em Leminski, o sorriso discreto, gozoso. E um certo modo de olhar, sempre armando o que virá depois, a leveza inteligente do último verso. Desenhar um rosto é fazer escolhas, mas num nível quase inconsciente. Às vezes penso que apenas a mão guarda certo grau de consciência.

E no final a síntese, quase um processo de desmonte. O rosto reduzido a uma membrana de percepção, mais ou menos certeira, mais ou menos equivocada. Mas sempre um artefato simplificado de linhas. Pode que o Leminski mais jovem pareça mais seguro, mesmo o riso é de uma natureza mais controlada, o rosto antes do desmonte - que a vida impõe. O que importa no entanto é tomar o rosto de carne e osso como pretexto para a especulação do desenho.
A imagem pode conter: desenhoA imagem pode conter: desenho
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quinta-feira, 20 de dezembro de 2018

Poesia Brasileira / Jornal RASCUNHO

PARTINDO LENHA


quando a lâmina em cunha do machado
está afiada e o golpe é bem dado
a lenha se abre à primeira machadada

a força é necessária, mas a qualidade
do golpe, a favor do veio seco
nunca contra, é que faz a diferença

o ângulo reto sobre o topo da acha
ou levemente inclinado desviando o nó
vai determinar a eficácia da batida

o estalido seco e rasgado das fibras
aquece antes do fogo o corpo
como o esforço físico despendido

aos oitenta e dois anos, minha nona
três dias antes de morrer, partia lenha
no tronco, sob o telhadinho do paiol

 o vestido azul xadrez, o coque branco
o corpo magro e enérgico, e súbito
o quarto de círculo do golpe no ar

sem nenhum trejeito ou desperdício
de energia, concentrado em fender
no ponto certo o pinho ou a bracatinga

lembro do azul limpo e alegre dos olhos
em comunhão com o céu maior
da pele fina das mãos e das pernas

daquele modo justo de caber na vida
e eficiente, sem que no entanto
sua aura de alfazema se perdesse

carlos dala stella



NONA IZA / PARTINDO LENHA

O desenho tem trinta anos, notação rápida, de lembrança. Foi feito pouco mais de um ano depois da morte de minha avó paterna. Essa cachorra no canto direito se chamava Suzi. (Depois vieram pelo menos três gerações de Quincas Borba, que sempre preferi à Memórias Póstumas e Dom Casmurro. Quanto a Brás Cubas, ao depois amor pegou, como diria Drummond, mas Dom Casmurro continua até hoje preterido. Quase trezentas páginas remoendo a traição é um pouco demais, evidência inequívoca do prazer de corno do falso casmurro.) E a avó é a mesma do poema Partindo Lenha, publicado na edição de dezembro do jornal Rascunho, na coluna Poesia Brasileira, de Mariana Ianelli.

sábado, 15 de dezembro de 2018

mallarmargens 

 revista de poesia e arte contemporânea 


por Marília Kubota - 19/01/2017


Achei dificílimo selecionar seis poemas do livro O gato sem nome, de Carlos Dala Stella. Foi trabalhoso escolher apenas seis peças, entre tanto deslumbramento. Este artista múltiplo, que pinta, desenha, esculpe, recorta e escreve na solidão de seu ateliê, no bucólico bairro de Santa Felicidade, em Curitiba, registra inúmeros episódios de epifania em imagens e escritos. Pelo menos uma vez na vida, os poetas deviam experimentar este tipo de solidão, simultaneamente monástica e erótica, que conduz os sentidos a um fluxo vertiginoso  em que a ordem é a beleza da intimidade.  

Carlos escreve poemas em diários, ou cadernos de artista, nos quais testa projetos de obras que engendrará em telas ou em esculturas de madeira e papel. Ao visitar seu ateliê – e o blog diário de ateliê, em que registra tudo, ou quase tudo que cria, o observador fica tonto com a profusão de ideias e obras.

Mas Carlos é minucioso. Se publicou O gato sem nome em edição caprichada do Caderno Listrado (assinada pelo artesão gráfico Daniel Barbosa), tem ciúmes dos poemas que escreve nos diários. Não quer divulgá-los, a não ser quando publicados em livro, ou no blog. Por isto, cada poema é uma revelação.  

O ateliê de Carlos lembrou a casa de Claudio Seto, já falecido, que morava no bairro de São Brás.  Seto não tinha um ateliê : seu escritório era atulhado de revistas, jornais, livros, zines, publicações de histórias em quadrinhos, arte e cultura japonesa,  ciência, astrologia, futebol, magia, desenhos, idéias para quadros. No quintal abundavam bonsais e pinturas, como saídos de uma cornucópia. Carlos é disciplinado em sua desordem criativa. De sua cornucópia também jorra leite e mel, e como Seto, ele vinga-se dos avaros que só produzem para o imperativo do mercado. 

Para os artistas fora do eixo, felicidade é encontrar uma arte em sintonia com a observação da delicadeza da vida. Uma arte que, por contaminação, reproduz esta delicadeza em obras ímpares.  

O silêncio da escrita

ENGODO

Vida é esse miolo pulsante
limitado sempre pela casca.

Ao contrário do pão e do ovo
a gema que há dentro
está condenada a alimentar o escuro.
A luz latente, circular e bela
em sua substância amarela
não passa de engodo.

Mas o olho interno entrevê
na luz fecundante da única vela
o esplendor vermelho do sol.


ADRIANO LUGARINI, 14

Enquanto risco o carvão na tela virgem
com a ajuda de uma haste de bambu
- antiga vara de pesca de meu pai –
seu Daniel cuida das mudas de girassol
plantadas ao longo do muro branco
entre a porta do ateliê e o portão de ferro.
Paciente, aguardo que a frágil linha,
invisível para quem passa na rua,
cresça amarela, e acenda os olhos
de quem se perde por aqui.


A MARIPOSA

tromba contra o isopor do teto,
contra o prato da lâmpada mais forte,
contra a superfície colorida das telas.
As trombadas seccionam
seu vôo espiralado com golpes
aparentemente inofensivos, indolores.

O som oco se repete dezenas de vezes
mais do que um estalo,
menos do que um choque,
até que o silêncio volta, sem pânico.

Sobre o caderno de desenho aberto,
caminha a mariposa
num treme-treme ritualístico.

Dois olhos nas asas perguntam
se o que fiz de mim nesta segunda-feira
terá algum sentido depois, e qual ?
- dois inquietos olhos negros
vindos do amanhã.

O ensaio da escrita

COMO OS CHINESES

Escrevo meus quadros
às vezes nem é o quadro que me interessa
mas a pipa em que ele se transformou
- vermelha, com sua longa rabiola
chicoteando o azul.

Quando sinto nos dedos
a tensão do fio, o vento das alturas
atuando sobre a estrutura de paina e seda,
reconheço espantado que o voo do quadro
nasce em mim
mas não sei para onde me leva.


NA VOLTA DO ATELIÊ

Mãe e filha
batem bola na rua
em frente de casa.
Param para que eu passe.
Pelo espelho retrovisor vejo
a alegria com que retomam o jogo
no antipó remendado.
Ambas de calça curta.

Que diferença faz
se está nublado e se eu não pintei
nenhum quadro ?


OS OLHOS DO PAI

Tão frágil a borboletinha do fim da tarde
Com seu voo leve de asas helicoidais.

Tão doce o perfume do jasmineiro miúdo
Apenas cai a tarde começa a noite.

Tão imóveis o juvevê sem folhas
A varaneira sem galhos
O pinheiro só tronco e espinhos.

Tão parado o ar
Tão sem estrelas a noite
Sem grilos vaga-lumes besouros
Sem lua.

Três anos que meu pai morreu.

1o. Voo
CARLOS DALA STELLA, poeta-pintor nascido em Curitiba, em 1961. O diálogo entre artes plásticas e escrita permeia tanto seus desenhos e telas, quanto seus painéis de cimento e vidro. Ilustrador de livros, jornais e cartazes, expôs pela primeira vez em Monselice, Itália. É autor de Caçador de Vaga-lumes(poemas), Riachuelo, 266 (contos e crônicas), Bicicletas de Montreal (desenhos e fotos) e O gato sem nome(poemas) e Nanquim (desenhos).


sábado, 1 de dezembro de 2018

Falas ao Acaso



Blog de JOBA TRIDENTE

sábado, 1 de dezembro de 2018


Carlos Dala Stella: A Arte Muda da Fuga


Neste novembro primaveril de 2018, o escritor de verso e prosa e artista plástico brasileiro Carlos Dala Stella lançou o belíssimo livro A Arte Muda da Fuga, que traz 108 poemas meticulosamente pinçados dos seus fascinantes Cadernos de Ateliê, onde há 39 anos ele une recortes, colagens e manuscritos poéticos. Para esta luxuosa edição ilustrada com obras do autor, a crítica literária e escritora Marta Morais da Costa, doutora em literatura pela Universidade de São Paulo, e autora do excelente posfácio, mergulhou em aproximadamente duas mil páginas dos Cadernos 47 a 57, produzidos em 2014 e 2015, para desvelar ao grande público leitor e apreciador da boa arte a intensa e desconcertante produção de Dala Stella, que já está em seu Caderno de Ateliê 70.




A princípio pensei em apresentar alguns extratos do posfácio de Marta Morais, mas ponderei que, além de mutilar o encadeamento perfeito do seu extenso texto, este não seria suficiente para o leitor conhecer Carlos Dala Stella em sua plenitude. Assim, preferi sugerir alguns links de postagens anteriores aqui no Falas ao Acaso, de blogs do autor e da editora, entre outros, em sua breve biografia, ao final da página.



Para esta postagem selecionei cinco poemas do livro A Arte Muda da Fuga (2018): a arte muda da fugavaziosparlatórioignorância solaraprendizado. As fotos (fac-símiles do livro ou dos Cadernos)  são de Pith Haid.



      
     
a arte muda da fuga
Carlos Dala Stella

o silêncio sempre foi
meu maior interlocutor
qualquer coisa que eu diga
um monossílabo que engula
ele ouve e sopesa
por mais que eu grite
para dentro e sufoque
um substantivo, ele me acolhe
côncavo e atento
mesmo que eu sopre pérolas
inaudíveis, ele recupera a concha
nunca o silêncio me foi
indiferente, cada vez mais
interfiro na trama
de seus fios transparentes
quem sabe dessa parceria
um dia não surja
a arte muda da fuga


vazios
Carlos Dala Stella

o vazio está cheio
de possibilidades e não transborda

a clareira no meio do mato
o pátio na arquitetura
o silêncio no teatro
o côncavo da caverna
o oco do quarto
o domo da Stª Maria del Fiore

quanto vazio para dizer
sem palavras
a plenitude de deus
o maior de todos os vazios


parlatório
Carlos Dala Stella

chega uma hora em que o mundo
nos fala sem intermediários

falam as nuvens carregadas
e falam cúmulos de organza

falam as janelas fechadas
e fala o branco no varal

falam as pálpebras ligeiras
e falam os olhos leonardos

fala tudo que se mostra
e tudo que se esconde

o que se exibe no espelho
e o que se dá trás-os-montes

só não fala o desconhecido
que todas as manhãs acorda


comigo


ignorância solar
Carlos Dala Stella

estamos no meio do mar morto
encalhados, mais vivos impossível
por todos os lados esse silêncio religioso
essa linha circular do horizonte
reduzidos à chama bruxuleante
da respiração, mudos de tocar
com os olhos o brocado das estrelas
mudos e entregues à ignorância
solar de não saber cada vez mais
em que Ítaca esse barco vai dar


aprendizado
Carlos Dala Stella

tão longo o aprendizado
pra chegar no mesmo lugar
onde nossos antepassados chegaram
pra cair exatamente
no mesmíssimo buraco
e no entanto nossos amores
proibidos e absolutos foram todos
intimamente particulares

tão vário o aprendizado
tão moderno e diverso daquele
de nossos queridos pais
e no entanto o deserto florido
a que chegamos é o mesmo
deserto de nossos ancestrais
a mesma areia entre os dedos
os mesmos cegos girassóis

de uma alegria tão doce
e genuína, e tão imprevista
que nem chega a ser aprendizado
é vida que sucede à vida
e no entanto acabamos
desaguando no mesmo rio
de peixes imemoriais
que vai dar no sal do mar

tanto ímpeto desse corpo
tanto esforço renovado
e tanto gozo na lida amorosa
com o corpo cheio de paraísos
e armadilhas do outro
e no entanto não aprendemos
nada de novo senão reavivar
o espírito rubro do fogo


Carlos Dala Stella em seu ateliê, no Bairro de Santa Felicidade, em Curitiba

Carlos Dala Stella é escritor de verso e prosa e artista plástico. Nasceu no bairro de Santa Felicidade, em Curitiba, Brasil, no ano de 1961. É formado em Letras, pela Universidade Federal do Paraná e desde a década de 1980 dedica-se ao desenho. Carlos, que já expôs na Itália, publicou os livros O Caçador de Vaga-lumes (poemas, 1998), Riachuelo, 266 (contos e crônicas, 2000), Bicicletas de Montreal (fotografia e outras artes visuais, 2002), O gato sem nome (poemas, 2007) e A Arte Muda da Fuga (poemas, 2018). Em 2012, Dala Stella foi finalista do prestigiado Prêmio Jabuti, na categoria Ilustração, com o livro Quer Jogar?(2011), de Adriana Klisys.
Para saber mais: no Falas ao Acaso, cinco poemas do livro O Gato sem NomePoema I;Poema IIPoema IIIPoema IVPoema V..., e o magnífico A Beleza dos Bichos, poema que está presente em A Arte Muda da Fuga; blogs de Carlos Dala Stella: dalastella e cdalastella; resenhando: entrevista com Carlos Dalla Stella; site da Editora Positivo, que publicou A Arte Muda da Fuga, para compra online...

Posfácio de A ARTE MUDA DA FUGA


Marta Morais da Costa


Este posfácio nasce do silêncio.
Este posfácio nasce da mudez do espanto.
Nasce fadado à incompletude.
Nasce para deixar vazios.
Este posfácio é uma confissão de fraturas e falhas.

1. E fez-se o livro

Livros não apenas contam histórias. Livros são histórias. E este nasceu em uma visita, em tarde de chuva, ao ateliê de Carlos Dala Stella. Gestado inicialmente na cabeça do poeta e de sua editora, ganhou concretude quando matrizes encadernadas e soltas, guardadas em imensa série de cadernos no ateliê, foram sendo abertas e delas jorraram páginas e páginas e páginas de uma escrita abundante, de manuscritos ilustrados, de alta poesia liberta que tomou conta do ambiente, de meus olhos surpresos e encantados, criando uma atmosfera de respeito à arte e de desejo de aventura. Travessos, estes olhos míopes sentiam o apelo daquelas páginas de onde saltavam imagens, desenhos, recortes, colagens.

No mar em preto e branco, indistinguíveis, as volutas de tinta preta criavam simbioses entre o que era forma plástica e forma poética. As linhas dos versos seguiam cursos fluviais caprichosos, misturando-se às imagens ora apresentadas em contornos fechados, ora abertas em cavernas vazadas a insinuar camadas de outras formas e sentidos. O turbilhão em preto e branco engolfava esta leitora de palavras e imagens.

Organizados, etiquetados, imóveis, os grandes cadernos de ateliê, tal uma ilha de tesouros, anunciavam muitos, infinitos poemas que a intenção de apenas um livro era incapaz de conter. Ficavam ali, descansando, à espera de pesquisa, de seleção, de volumes a serem editados. De objeto em objeto, de opulentas e provocativas ilustrações, de poemas e mais poemas e mais poemas, Dala Stella falava de sua fecunda, notívaga e madrugadora produção poética. De incontíveis e incontáveis escritas que se armavam, se derramavam, se orquestravam naquelas páginas manuscritas. Talvez um livro novo em cada caderno.

A fecundidade da obra do poeta esbarrava no projeto contido de apenas um livro. Como selecionar, entre a riqueza de obras artísticas do Louvre, apenas uma? Como selecionar, entre as aves do Pantanal, apenas uma? Como, diante do Universo, afirmar a existência de apenas um planeta habitado? A tarefa de fazer nascer “A arte muda da fuga” pertencia a difíceis – e impossíveis – seleções.

Uma possível saída – e que se revelou produtiva e acertada – foi solicitar ao poeta a escolha da produção recente que, segundo ele, representasse melhor  sua poesia do presente. Como nauta experiente, ele saberia navegar melhor no oceano de sua produção.

Assim se fez: da internet começaram a jorrar em meu computador arquivos e mais arquivos de poemas selecionados por Carlos Dala Stella, de sua produção de apenas dois anos (2014-2015). Eram dezenas e dezenas de textos, com temas, motivos e extensão variados, a pedir tinta, impressão, luz do dia. Em sua autonomia e feliz liberdade, proclamavam, no entanto, elementos comuns, parentescos, liames e conjuntos.

Em busca dos fios a se entrelaçar, a se combinar e enovelar, fui pouco a pouco descobrindo meadas comuns, matizes de cores predominantes, possíveis agrupamentos. Nasceram assim as categorias de amarração dos poemas pré-selecionados pelo autor e novamente selecionados por mim. O volume ganhou sua primeira forma, que a editora aperfeiçoou e enriqueceu, imprimindo-lhe ritmo e visualidade.

A tarefa se transformou em viagem lúdica e prazerosa. O que parecia aridez era antes avidez de leitura. Indagações já traziam implícitas as respostas. Estabelecidos os grupos, definidas suas características, os poemas facilmente deslizavam da tela fria dos arquivos enviados para os ninhos em que se agrupavam, solidários e irmanados. E este volume se fez.


2. Uma poética de vazios e silêncios

O artista plástico revela, nos vazados e nas aberturas, uma multiplicação de planos: camadas sucessivas em que continente e conteúdo se alternam e se contrapõem. Ao enveredar pela “A arte muda da fuga”, o leitor vai confrontar variáveis dessa escolha estética da multiplicação de planos. A primeira constatação é de que Carlos Dala Stella é um poeta fingidor, integrante da constelação de Fernando Pessoa. Não é o único. Não será o último. Suas verdadeiras dores e saberes chegam à luz envoltos no manto diáfano de apurada técnica de escrita. É um poeta de miudezas, de sintaxe sem nós e de imagens de simplicidade e espartana concisão.

Em volutas poéticas que rocambolam de poema a poema, o poeta se desnuda e se autointitula. É uma poesia em que a imagem, aparentemente plana, aos poucos se abre em recortes e vazados por onde o leitor (também um espectador) é atraído para camadas profundas das palavras, dos ritmos e da poderosa visualidade que sedimenta sua obra.

As linhas mestras deste livro e, muito especialmente, seu título explicitam-se nos versos de “A arte muda da fuga”:

nunca o silêncio me foi
indiferente, cada vez mais
interfiro na trama
de seus fios transparentes
quem sabe dessa parceria
um dia não surja
a arte muda da fuga

Surgiu. Materializou-se. Ganhou forma, corpo, estrutura, conexões, tinta e papel. O poeta, não mais sem voz, pode apresentar-se vestido de cenários, de cores, de rimas e qualificar-se para antenar silêncios e mergulhar em vazios. Há uma espécie de metafísica construída pelo desejo de ter acesso aos enigmas do não dito, até para opor-se à vida trepidante, e quase sempre artificial, deste século que nos engolfa. O poeta capacita-se a outro fazer e sentir, como toda a confraria de poetas: “Somos os que ouvem o silêncio universal”, proclama ele em “casulos de sol”.

O “silêncio universal” poderia enganosamente provocar no leitor a compreensão de uma poesia sideral, astrofísica, cósmica. Algo como ouvir estrelas, captar mensagens de outros mundos, antenar-se nas galáxias.  É verdade que, enquanto motivos poéticos, é possível descobrir na sequência de poemas desta seleção boa quantidade de referências verbais a esse campo semântico. No entanto, qual Ulisses resistente ao cantar das sereias, Carlos Dala Stella percebe o espaço sideral, mas somente o aceita e dá sentido quando ele se espelha em partículas terrenas: “grão infinitamente estelar/ em universos de areia”, versifica ele em “finitude estelar”. 
O paralelo universo estelar=grão de areia não é apenas uma comparação, a prima pobre da metáfora. É antes a possibilidade, como afirmava Carl Sagan, de nossa finitude humana ser resultado da “poeira das estrelas”, ou, como este cientista diria menos poeticamente, “A vida é apenas um vislumbre passageiro das maravilhas que existem no Universo.

A correspondência entre sentidos corporais e a decifração da realidade, claras ressonâncias da obra de Rimbaud, colocam na berlinda um dos procedimentos-chave de sua obra: a concretude do mundo que o assalta em todas as horas e em todos os espaços transfigura-se em imagens de neblinas, de sutilezas, de silêncios significativos, de vazios vazados abertos a planos cada vez mais profundos que interrogam os sentidos da vida.

meus olhos fazem a ponte
entre as levezas inúteis
do mundo de dentro
e a linha curva do horizonte  [insignificâncias]

Essas pontes, por vezes bastante sutis, leves e pênseis, povoam a poesia com correspondências inovadoras a juntar, por meio dos liames das palavras, os diferentes planos da vida visível. 

continuo grato por tanta generosidade
mas eu não desejei essas coisas
muito menos elas esperavam ser desejadas
apenas colei nelas o selo do meu espanto [admiração]

A presença da natureza, representada por uma pluralidade de elementos simples – aves, árvores, chuva, sol, estrelas, grão de areia –, beira o bucólico, caso não fosse ampliada em dimensões cósmicas ou em estados de alma. Nesse aspecto, a poesia de Dala Stella bordeja a obra de Eugênio Montale (1896-1981), poeta italiano considerado hermético em linguagem poética e nos sentidos dos poemas. A crítica vê em Montale uma escrita que, servindo-se de fragmentos de tempo aparentemente desimportantes, busca compreender a vida que neles brilha e ganha sentido.

Montale expressa esse estado poético, por exemplo, no poema “Os limões”:

Vê, neste silêncio no qual as coisas
se entregam e parecem prestes
a trair o seu último segredo,
às vezes esperamos
descobrir um defeito da Natureza,
o ponto morto do mundo, o elo que não prende,
o fio a desenredar que enfim nos leve
ao centro de uma verdade.
O olhar perscruta em volta,
a mente indaga concerta desune
em meio ao perfume que se espalha
enquanto o dia enlanguesce.
São os silêncios em que se vê
em cada sombra humana que se afasta
alguma Divindade surpreendida.

O poeta deste livro tem, porém, uma propriedade particular e oposta à do poeta italiano: foge do pessimismo montaleano e prefere articular sua visão da natureza-vida com o espanto, o desconhecido, o “silêncio universal”, porque “há em cada um de nós/ uma coroa de mistérios/ que luz alguma alumia”.

Esse interrogar constante, mesmo sem encontrar respostas definitivas, guarda a riqueza de constatar com espanto as manifestações da natureza. São animais, “bichos”, que, em variedade copiosa, impedem que o poeta se sinta só. E voejam pararus, urubus, sabiás, pintassilgos. E se arrasta a lesma sobre o mármore, a libélula esplende em vitral e a aranha tece, como o tempo. São pequenos animais a significar enigmas da vida e da arte.

A poesia de Dala Stella produzida neste estágio de sua obra artística incorpora uma visão madura aos questionamentos sobre a subjetividade, uma das linhas mestras temáticas de sua escrita: ”seja quem eu for/ sou irremediavelmente o que sou/ e ninguém é comigo!”. Há uma aceitação tranquila da singularidade entre os mortais e uma inquirição constante da individualidade em face do universo, mesmo que, em momentos de desilusão e de uma perspectiva negativa, seus versos considerem os seres humanos tal qual “cometas kamikazes”, envoltos em “um miasma/ de vaidades”, fazendo ecoar nesses versos a crueza de um Augusto dos Anjos.

Mas são raros esses lampejos de acerba crítica à conduta humana. De um modo geral, isolado em seu casulo de verdes e cantos, entregue à arte, ao espanto, à aproximação vital da natureza exuberante (“à indiferença majestática da natureza”), em meio a “telas, esculturas, recortes, esboços” e rimas, o poeta constrói seu ninho artístico e existencial, no meio do qual, feito “água-viva”, se movimenta.

A máscara da calma maturidade não evita, entretanto, a consciência do corpo frágil e do tempo poderoso que “me apaga com afagos” e, no mesmo influxo,  o obriga à aflição da criação artística. Tempo que, com “indiferença exuberante”, age como “um deus que não existe/ mas está em todo lugar”.

Se escrevi “calma maturidade”, não elimino de minha percepção –  seguindo os versos do poeta – toda uma angústia e perturbação interna, uma desacomodação que está na origem de toda arte. Integra intrinsecamente essa madureza “aquilo em cada um de nós/ que nunca virá à luz do dia”. Contradições que não impedem que, descobrindo as arestas de uma secreta e indefinível parte de si, faça o poeta supor que “se eu estivesse aqui/ estaria chovendo passarinhos mortos/ sobre minha alegria”. Entre a sintonia com a natureza, a arte de interrogar silêncios e a descoberta de faces desassossegadas de sua interioridade, o poeta derrama versos em busca da arte e de si mesmo.

Para quem se alimenta da fome, os versos se derramam em rios, as ideias se expressam em camadas e em desvãos, a busca de respostas para “mundos de ignorância e ausência” produzem no leitor efeitos desafiadores da sensibilidade e da compreensão.

Essa busca dos sentidos do mundo e do tempo, esse indagar os vazios e os silêncios como repositórios de respostas e de beleza acabam por conferir à poesia de Carlos Dala Stella a marca indelével de uma poética de inquirição, de comunhão estelar, de denúncia dos desacertos do homem em sociedade, de incompletudes pessoais e sociais. Constrói, à semelhança de Bach, uma arte como fuga, isto é, uma composição polifônica no contraponto de conjuntos temáticos.

E tal como em seu poema “silêncio”, chego ao final deste prefácio replicando seus versos: “o bom de pensar/ é que depois/ vem o silêncio”.

Marta Morais da Costa é crítica literária, escritora e professora.
É doutora em literatura pela Universidade de São Paulo.