Uma marca da genialidade de alguns raros escritores é a capacidade de definir uma situação com apenas algumas palavras. Enquanto a maioria deles precisa de páginas e mais páginas para “debruçar-se sobre a alma humana”, como se diz, alguns poucos descobriram como fazê-lo com não mais do que meia dúzia de palavras. Com uma pincelada rápida a situação está armada, e o leitor se sente um refém do texto.
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Mas é um engano ver pressa e brusquidão num gesto longamente construído. A escrita, para esses escritores obstinados e rigorosos, é tratada com minúcia de botânico. Em suas mãos a linguagem aparenta-se com a flor. É um erro grosseiro ver tosquidão onde há delicadeza e dedicação.
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Um exemplo extremo dessa habilidade, em grande parte sintática, de incluir doses maciças de contexto em textos curtíssimos é Dalton Trevisan. Vinte ou trinta palavras são suficientes para evocar um mundo. Um mundo que surpreendentemente nos inclui, por mais desumano que pareça, por mais saudoso do passado que possa enganosamente parecer. Várias vezes lendo seus contos, ou poemas, me pergunto: quanto esforço terá sido necessário para fazer desse território comum que é a linguagem uma terra particular? Qual foi a paga para esse domínio inquestionável?
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A evocação a Curitiba, à qual o autor se autocondenou, ou ao seu vampirismo, podem não ser pistas falsas, mas ajudam muito pouco a compreender como ele chegou a esse uso a um só tempo rigoroso e poético da linguagem. Sim, porque é inegável que há poesia em tudo o que ele vem escrevendo, mas poesia que corta, que machuca o leitor. Ou, pior, uma poesia que chega ao limite de fundir ternura e sangue, como no conto do desequilibrado que mata meninos depois de molestá-los sexualmente, para enviar os anjinhos para o céu. Por alguns segundos o juízo é suspenso, e nos vemos feitos da mesma matéria de que são feitos esses personagens “desumanos” que certa crítica insiste em restringir à classe média baixa, quando não ao passado, erro ainda mais grosseiro.
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Naturalmente essa poesia pouco ou nada tem a ver com a poesia produzida pelos poetas brasileiros contemporâneos. Ela caminha na mão inversa de toda sorte de pirotecnias da poesia que se quer eternamente de vanguarda, assim como do sentimentalismo piegas dos versejadores de província. A poesia de Dalton, por uma ilusão de ótica, parece pertencer às coisas elas mesmas, como um atributo natural do homem. Mas quando pede para que ouçamos o canto que a casca vazia da cigarra no tronco da árvore evoca, é dele que vem o canto da cigarra retirada de lá antes mesmo que pudéssemos vê-la. E esses pequenos diálogos em que apenas um fala, embora sintamos a presença incontestável do outro, sinalizada minimamente pelo travessão e pelas reticências? É essa capacidade de animar o mínimo, de recolher os gestos que cotidianamente são desprezados como insignificantes ou condenados como vergonhosos, é esse procedimento, entre outros, que dá a cada um dos seus ais um vigor poético incomum.
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Esse domínio da arte de escrever, melhor, da arte de trazer o mundo para o que se escreve, é tão cristalino em Dalton que mesmo a atitude mais vil de seus personagens está carregada de um vigor positivo tão grande que somos levados a rever nossos parâmetros éticos, aceitando como humano gestos que prefeririamos atribuir aos animais. E aí entra outro ingrediente da poética do autor, poucas vezes percebido, através do qual o que é torpe, sujo e feio revela certa beleza, passando a ser aceito como parte do que somos: o humor. Como não rir quando a mulher reclama, ao final de um diálogo erótico, que o parceiro instruído por ela esqueceu, mais uma vez, de usar o chicotinho? Ou ainda, quando a mulher põe fim à enfiada de palavrões com que o marido a assedia: “Sou cadelinha. Sou putinha. Só me deixa pregar o botão nesta camisa. E daí sou tudo o que quiser.” Esse humor encapsulado é explorado em uma série de nuances, às vezes corrosivo, às vezes recatado, às vezes mesmo terno.
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Em outro de seus poemas, depois de comparar Guido Viaro a uma rua barulhenta de Curitiba e Poty à praça Tiradentes às cinco da tarde, Dalton diz de si mesmo: “E eu, mal de mim, esse perdido beco sem saída atrás da Catedral”. Embora trechos como esse possam ser tomados como confirmação de que o autor é um refém de si mesmo, como se diz repetidamente, prefiro ver nele a constatação de uma outra verdade. Para além do fato de que são reféns de si mesmos todos os escritores ou artistas que com sua obra deram significado ao nome que receberam, fica evidente aqui a coragem de fazer um auto-retrato sem pompa, sem adereço, que exclua todo o supérfluo.
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Se Viaro é uma rua barulhenta, onde todos se cruzam mas ninguém conhece ninguém, se Poty é uma praça, local de encontro de toda a fauna humana, ele, Dalton é um beco sem saída, onde se está irremediavelmente só, local onde os vampiros se escondem, poderíamos dizer. Mas não estamos falando de um vampiro, senão de um homem que laboriosamente foi construindo um conjunto de dutos e veias por onde circula seu sangue. O beco de Dalton, esse uso idiossincrático da linguagem, mais do que um não à metrópole curitibana, me faz pensar nos becos de Manuel Bandeira. Com a diferença de que o pernambucano via o beco pela janela, prosaicamente protegido pelo anteparo do vidro ou da sacada, enquanto Dalton o sente na tensão difícil entre os poucos corpos que se aventuram a percorrê-lo ou mesmo a habitá-lo. O beco é sujo, mal iluminado, esquecido na geografia da cidade, mas ele guarda vida, e o risco sempre iminente da morte.
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O que importa em Dalton é que o vigor do seu não tem um poder regenerador. Paradoxalmente, é do beco que vem o olhar menos provinciano, menos local, menos paranaense, um dos olhares mais vivos e maduros que o Brasil já teve. Por isso Curitiba tem tão pouca importância em sua obra, afinal Curitiba poderia ser Dublin, São Petersburgo ou Paris.
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Do livro Riachuelo, 266
3 comentários:
é o melhor e mais lindo texto que já li sobre o Trevisan.
obrigada.
Pois é, prima, esse menino está com tudo e não está prosa.
Do coração: obrigado obrigado.
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