Há algum tempo a crônica deixou de ser um biscoito fino para se tornar um desses enjoativos biscoitos recheados com baunilha ou chocolate, que agradam tanto às crianças. Quem está cansado da lenga-lenga sobre nada de Raquel de Queirós e João Ubaldo Ribeiro, quem não agüenta mais a crônica como tema de si mesma, quem se via obrigado a enfrentar um banquete para saciar a fome miúda e fora de hora, prepare-se para degustar as guloseimas e os quitutes mais deliciosos do cardápio brasileiro.
Saiu há mais de dez anos, pela Nankin Editorial, o livro Cascos & Carícias, de Hilda Hilst (reeditado pela Globo, em 2007, com o acréscimo de novos textos), reunindo crônicas publicadas originalmente no jornal Correio Popular de Campinas, entre 1992 e 1995. Antes mesmo de abrir o livro, somos fisgados pela capa, que reproduz o retrato da artista quando jovem, bela e provocadora. A repetição do mesmo rosto, em preto e branco, segundo cortes sempre diferentes, torna contagioso o sorriso dos lábios e dos olhos, maroto como o gesto obsceno feito com a mão direita.
Em contraste com o tom aparvalhado a que se viu reduzido o gênero que ganhou maioridade na mão de um time de primeira - formado entre outros por Manuel Bandeira, Paulo Mendes Campos, Vinícius de Moraes, Rubem Braga e Drummond -, o tom das crônicas de Hilda Hilst é surpreendentemente debochado, indignado, agressivo às vezes. Embora pertençam ao mesmo universo de sua ficção, especialmente a partir de O Caderno Rosa de Lory Lambi, elas esbanjam uma irreverência e uma ludicidade que ultrapassa os limites já por natureza generosos do gênero.
Mas nem só de cascos é feita a crônica desta poeta, dramaturga e ficcionista que estreou em 1950, com o livro de poemas Presságio. Com mais de 30 títulos publicados em diversos idiomas, ela conseguiu unir com uma lucidez particularíssima duas pulsões humanas que raramente andam juntas: a obscenidade e o lirismo. Mais exatamente ela denuncia uma união indesejada, mas inevitável, entre o obsceno e o lírico, como se dissesse que cascos e carícias fazem parte a mesma natureza humana.
Um dos exemplos mais bem humorados de sua irreverência libidinosa: Bem, agora quero lhes contar do meu filho. Tem 40 anos. Casado. Sua mulher é tolinha, dessas que falam sem parar, sempre imbecilidades. Leu algum que discorreu sobre a importância de “agilizar o conceito fala”, de extravasar. Sua visista era um inferno, eu colocava meu xale acastanhado e cantava baixinho, só para ela, uma canção muito engraçada dos meus tempos de faculdade: “cumé que é, meu capim barba de bode, / faz tempo que nóis num mete / faz tempo que nóis num fode...” Ela se arrepiava inteira. Dizia para meu filho: Leocádio, sua mãe está louca. Como é que você pode deixá-la aqui sozinha quando ela deveria estar naqueles belos lugares onde as velhinhas bordam, cantam canções de ninar, fritam bolinhos...
Freqüentemente seu humor incorpora o sotaque caipira típico do interior de São Paulo, sotaque que na maioria das vezes é ridicularizado na escola e nunca chega às páginas dos jornais. Um bom exemplo do uso dessa modalidade da língua é a crônica Tô Só: Vamo brincá de ficá bestando e fazê um cafuné no outro e sonhá que a gente enricô e fomos todos morar nos Alpes Suíços e tamo lá só enchando a cara e só zoiando? Vamo brincá que o Brasil deu certo e que todo mundo tá mijando a céu aberto, num festival de povão e dotô? Que termina assim: Vamo brincá de autista? Que é isso de se fechá no mundão da gente e nunca mais ser cronista? Bom-dia leitor. Tô brincando de ilha.
Quando faz referência à crônica é para criticar o lugar-comum do gênero: Uma das coisas que mais me chateiam nisso de escrever crônicas é a quase obrigação de ser sempre pra cima, vivaz, alegrinha, ou então estar sempre em dia, na crista, notícias cintilantes...Ser sempre interessante como se todos fossem inteligentíssimos, profundos, finos, cultos, delicados... Nem alegrinha nem na crista. A essas duas solicitações ela contrapõe um humor debochado e uma crítica mordaz, principalmente quando se refere à realidade social e política do país; ou desaponta o leitor - e os editores - recheando os textos com poemas seus, como os três belos poemas de Alcoólicas, dedicados ao também poeta e cronista Jamil Snege.
O que Hilda Hilst faz é subverter o conceito comum de crônica, sem no entanto desprezar o leitor de jornal. Quem tem uma intenção tão reta e feroz, embora subversiva, não tolera que se perca de vista o leitor. Em última instância é ele quem a autora procura subverter, com uma espécie de catecismo às avessas. A poesia, e também o sexo, seriam duas formas de encher de beleza e de justa ferocidade o coração do outro, do outro que é você leitor.
Embora suas crônicas mantenham o viço mesmo publicadas em livro, é inevitável reconhecer que o espanto e o gozo seriam ainda maiores se abríssemos o jornal de Campinas, por exemplo no domingo, dia 26 de fevereiro de 1995: Gente... que coisa! o cara colocando a camisinha na banana! E que música mais chinfrim! Não acredito que nestes nossos tempos epidêmicos de Aids e Ebola nenhum comunicador tenha encontrado uma fórmula sóbria e eficaz para alertar o povão sobre o perigo das relações sexuais sem o uso de preservativos! Vocês acham que lá nos cafundós (que é o Brasil inteiro) seo Mané vai entender o que estão querendo dizer em meio àquela suarenta de traseiros e tetas, e todos rebolando frenéticos num frenesi dementado e patético? O que vai acontecer com essa estória de banana é o seguinte:
ô seo Mané, já comprô as bananas pras camisinhas?
já, seu Jucão.
põe no cacho inteiro, viu? Assim a gente pode metê pra valê.
Publicado originalmente no jornal Gazeta do Povo
2 comentários:
Essa mulher é mesmo uma delícia de lucidez (ainda que ligeiramente louca) e irreverência! Não sei como conseguiu viver aqui em Campinas .
Agumas pessoas, parece um milagre que elas tenham existido. Em Campinas, Curitiba ou Pindorama. E os milagres nunca foram tão necessários.
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