sexta-feira, 25 de março de 2011

Barcelona de Gaudí, Curitiba de Poty

Fiquei surpreso quando li que de cada dez pessoas que visitam Barcelona, oito o fazem por causa de Antoni Gaudí. Não que o genial arquiteto catalão não mereça a honra de tantas visitas. Seu trabalho é a prova de que o sonho faz parte de nossas necessidades vitais, como comer, beber, dormir, amar, mesmo que às vezes ele se aproxime perigosamente do pesadelo. E o homem que tudo podia a partir de simples pedras ou fragmentos de azulejos dilatou como poucos os limites da necessidade humana de sonhar em direção a uma espécie de fantasmagoria em vários aspectos infantil.

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Fiquei surpreso por constatar como figuras como essa mais do que emprestar seus traços à fisionomia de uma cidade, no limite passam a substituí-la. Para oito em dez turistas, embora continue dona de um corpo pleno de atributos particulares, Barcelona reduz-se - ou amplia-se, o que é ainda mais surpreendente - às obras arquitetônicas de Gaudí. Daí a uma imagem subjetiva e generalizante da cidade, sob o impacto dessa personalidade catalã originalíssima, vai apenas um passo.

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Se de um lado Barcelona parece extremamente generosa, porque permite que novos traços vão sendo incorporados à sua identidade sempre em expansão, por outro é preciso lembrar que só é possível tomar parte no corpo urbano à força de uma reivindicação poderosíssima. Não conta muito para essa conquista o poder instituído nomear uma praça, uma rua ou uma escola de engenharia com o nome de A. Gaudí. Mais do que qualquer dessas merecidas homenagens, suas obras é que conquistaram o direito de ampliar o imaginário da cidade, e fizeram isso à força, desprezando, por exemplo, o esquadrinhamento cartesiano das vias que circundam a Sagrada Famíla, o que ressalta ainda mais sua irregularidade quase monstruosa. Mas principalmente se batendo contra o projeto de arejamento que está na origem da arquitetura moderna.

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É certo, porém, que Barcelona aprendeu bem a lição, como provam o inquietante confronto entre o edifício do Colégio dos Engenheiros da Catalunha, de um lado da rua, e a Catedral Gótica, do outro, símbolo do confronto, mas também do convívio, entre a arquitetura gótica e a moderna naquela cidade.

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Embora Oscar Niemeyer seja indiscutivelmente responsável por alguns traços fundamentais da fisionomia do Brasil, especialmente no exterior, seu nome está mais ligado à Brasília do que a qualquer outra cidade brasileira, incluídas aí Belo Horizonte, São Paulo e Rio de Janeiro.

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Curitiba, que não possui um fisionomia arquitetônica particular, e que aprendeu a se contentar com os arremedos do mestre carioca, tem que procurar em outras áreas aqueles nomes que lhe emprestam identidade. Poty é sem dúvida um deles. Se é verdade que os turistas vêm a Curitiba atrás da Eldorado, em que a qualidade de vida seria superior à de outras cidades brasileiras, atraídos por algumas soluções urbanísticas originais e por uma estratégia de marketing eficaz, também é verdade que em algum momento da visita eles se deparam com o nome de Poty Lazzaroto, especialmente o muralista. E nesse sentido ele passa a fazer parte do imaginário da cidade.

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Mas a estratégia do artista paranaense parece ser bem menos bélica, ou reivindicativa; ele antes devide com o poder uma imagem que o Estado possui de si. O Poty baiano, próximo de Caribé, ambos atentos à cultura negra, o Poty sertanejo, que torna ainda mais real o grande sertão de Guimarães Rosa, o Poty indigenista, que revela segredos do dia a dia dos índios brasileiros, o Poty carioca, que dá traço aos personagens de Machado de Assis, o Poty interessado na cultura maia e asteca, esse Poty diverso se afunila, em Curitiba, num Poty unívoco, narrador convencional da formação histórica do Paraná.

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O muralista antes empresta seu nome à cidade do que lhe impõe uma identidade particular, identidade que inegavelmente ele possui, e que dá vida a grande parte de sua obra, especialmente à porção gráfica dela. Mas que à força de se subordinar a essa insana necessidade local de impor uma visão paranista à cidade, ocupando todos os espaços de seu imaginário, acabou se tornando redundante, degradando inclusive a qualidade de seu traço.

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À medida que o apuro técnico no manejo do isopor - material utilizado como fôrma para a fundição do concreto - vai se aprimorando, é visível que a concepção dos painéis, com seus pequenos núcleos temáticos, vai se repetindo à exaustão. Mesmo os painéis de cerâmica sofrem deste mal, como o duplo agravante de que agora o artista simula o uso da cor e perde a vitalidade de seu traço. É difícil, por exemplo, identificar a personalíssima nervura do traço de Poty no tubo de ligeirinho do painel da travessa Nestor de Castro, fundos da Catedral Metropolitana. Quanto ao uso recente da cor, basta colocar lado a lado qualquer gravura em preto e branco e um desenho da última safra, “colorido”. A cor, em seu caso, abranda a natureza rude do traço, tirando do desenho sua feição de estrutura armada, de finos fios retorcidos, que lhe davam personalidade e um poder impressivo incomum.

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A Curitiba de Poty não possui a diversidade genial da obra do artista. Infelizmente, o empenho com que se subordina, e portando se reduz, o estético ao político, no Estado, ao mesmo tempo que deu visibilidade local ao artista, não fez senão reduzi-lo à figura do ilustrador oficial de alguns momentos históricos do Paraná. Ao contrário de Gaudí, a obra de Poty cresce em diversidade e beleza justamente quando se vê desvinculada da cidade natal.

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Texto publicado na Gazeta do Povo

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