O bom de morar entre as pedras, quando chove, é sentir o vapor mineral que sobe depois dos primeiros pingos e desaparece quando as rochas estão completamente molhadas.
O barulho da chuva consola. Mas é triste ver os pingos explodindo nas pedras e a água escorrendo pelos veios vermelhos, tão longe da terra.
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Tao-chi (1641-1717): A Man in a House beneath a Cliff |
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A única música que se ouve é o vento, mas nessa época do ano ele apenas sussurra durante o dia e se cala à noite. Nem parece o vento cortante do inverno, que assobia semanas a fio, limando os nervos.
Às vezes grito palavrões, de pé na varanda. Ninguém responde. Um desconhecido que errasse por esses lados na certa ia espalhar que um louco mora no pé do penhasco. Um outro, ouvindo contar essa história, acrescentaria que há muitos anos um homem abandonara seu filho no alto de um penhasco, afogara a mulher e fugira para os braços da amante, na cidade vizinha. Outro ainda ajuntaria que o menino crescera falando com as pedras. E que, fato inédito, as pedras não só compreendiam o que ele dizia, como o consolavam com palavras de afeto.
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Nos fundos da casa de meus pais, caminhando descalço sobre as pedras do pequeno rio, descobri ainda menino como os pés dependem dos olhos.
Embora eu conseguisse chegar antes que meus irmãos na outra margem, pulando sobre as pedras, demorei muito até aprender a manter o equilíbrio numa única perna, com os olhos fechados, sobre uma pedra escolhida ao acaso. Eu acreditava que para manter o equilíbrio era preciso esquecer os gritos, assim como o barulho da água.
Quantas vezes não fiquei de pé, depois que vim morar aqui, os olhos fechados, uma perna dobrada, sobre essas pedras cor-de-rosas, ridículo e imóvel. Os ouvidos bem abertos, para que o silêncio passasse por mim como o vento pelos cômodos abertos de minha casa.
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Ontem, tinha apenas escurecido, eu estava deitado sem fazer nada, flutuando entre fragmentos de idéias, desejos, lembranças. Uma cigarra continuava cantando apesar do sol ter se posto há pelo menos uma hora. Dormi profundamente, embora não costume dormir tão cedo. Sonhei com uma mulher que gritava do meio das pedras para a casa:
- O penhasco começa ou termina aqui?
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Subitamente confuso, sem conseguir resolver essa equação que me parecia um enigma terrível, não tive discernimento senão para dizer algumas bobagens como é preciso subir muito ainda até o topo, ou muitos já passaram por aqui, alguns nunca voltaram.
A mulher, visivelmente desapontada, virou as costas e desapareceu atrás de uma rocha mais alta. No resto do sonho, essa espécie de eternidade que todos conhecemos, eu fazia cálculos e mais cálculos debruçado sobre uma folha tão grande como um mapa, mas não conseguia chegar a um resultado convincente. Até que rascunhei dois versos no meio daquele universo caótico de traços e números. E tive certeza de ter encontrado a chave.
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Acordado, no meio da noite escura, os dois versos ainda estavam frescos na memória, os mesmos dois versos que agora, à luz do dia, ditos em voz alta, não significam nada.
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Todas as manhãs estendo essa tira preta de papel à minha frente e penso: eis a morte. Assim, sobre o assoalho, o preto parece a delimitação de um espaço a ser preenchido. Nada mais enganoso. Resisto como posso à tentação de espalmar as mãos sobre ele. Seria belo, eu sei, colocar sobre suas extremidades algumas dessas pedras espalhadas pela casa, de diferentes formas e tamanhos. Ou escrever uma única palavra, qualquer uma, sobre sua superfície aveludada, pressionando as fibras contra as tábuas do chão. Belo, talvez, mas falso.
Depois de algum tempo torno a enrolar a tira preta, com cuidado para não deixar nenhuma marca no papel, e guardo o rolo dentro de um vaso de boca estreita, sobre a mesa.
Nunca me ocorreu enfeitar o vaso com uma flor, até a primavera do ano passado, quando milhares de florzinhas silvestres desabrocharam nas frinchas do penhasco. O rolo negro, então, deu lugar por alguns dias ao amarelo, ao branco e ao lilás aquarelados dessas espécies vulgares que parecem brotar das pedras e que não vivem mais do que um par de dias.
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Há pedras tão moles e farelentas que lembram o talco. Outras mais duras do que o ferro. A unidade absoluta de ambas, porém, não esconde sua natureza composta. Foi mais ou menos isso que meu professor de ciências escreveu no quadro há mais de trinta anos, numa de suas primeiras aulas, nos obrigando a copiar em silêncio, como se por trás daquelas palavras houvesse um significado oculto, que ele naturalmente conhecia e ao qual nunca teríamos acesso.
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Aquele platô à nossa esquerda, logo abaixo - ele na certa acrescentaria, caso estivesse aqui - por mais coeso que pareça é a soma de milhões de fragmentos. O segredo das pedras está em dar integridade à dispersão...
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Mas é bem capaz daquele desgraçado já ter morrido e eu estar evocando um fantasma.
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Você está vendo aquela pedra maior, depois do caminho, ao lado de outras duas que parecem monges? Alguém que nos olhasse trepado nela, além da casa, devorada pelo paredão de pedra, veria montanhas íngremes ao fundo, e à direita o vazio.
Várias vezes apoiei os pés na espinha dorsal daquela pedra, as vértebras irregulares descendo de ambos os lados, como as costas de um animal pre-histórico. Pois ouça bem o que vou lhe dizer, minha sombra. Caso eu saltasse para o vazio, nós nos separaríamos por alguns instantes, mas seríamos obrigados a nos reencontrar pela última vez, lá embaixo. Portanto, não me tente com esse seu debruçar-se para o desfiladeiro.
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A pedra calcária incrustada no dorso desta gigantesca pedra ferro parece um lírio. Macia ao toque da mão, tê-la como parte de uma ameaça constante sobre o telhado não me assusta.
Nas noites em que o silêncio é absoluto e o medo de morrer sozinho morde meus ossos, é no branco leitoso dessa pedra-flor que procuro descanso. Como um cego, tateio no escuro até o extremo da varanda. Esticando o braço para fora, toco a pedra fria. Então subo com a mão até sentir a maciez da cal na ponta dos dedos.
O súbito contraste entre a dureza da pedra e aquele reduto de fragilidade me devolve a calma. O silêncio volta a emitir seus resmungos de costume e o medo, o medo finge que dorme, sob as pilastras da casa.
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Esta manhã, mal abri os olhos, uma alegria súbita me arrancou da cama. Como se tivesse sido esfaqueado, o golpe me devolveu de uma só vez todas as alegrias da infância e os desejos da maturidade.
Corri para fora de casa e comecei a escalar o penhasco pela encosta leste, parcialmente iluminada pelo sol. A umidade do orvalho noturno, sobre as rochas, gelava a sola dos pés. Uma brisa suave, à medida que subia, refrescava os olhos. Mas esse frescor só fazia despertar ainda mais meus sentidos.
Na metade da subida, pouco antes das duas pedras gêmeas, o calor tênue nas costas, me virei de frente para o sol. Com os olhos semi-abertos, contra a horizontalidade dos raios, pude ver a encosta deste e a dos outros penhascos se encontrando lá embaixo, no vale ainda coberto ...
No final da manhã cheguei ao topo. Minha sombra não era mais do que uma mancha irregular ao redor dos pés. Tirei a roupa e, nu, abri os braços, girando ao redor de mim mesmo, à medida que gritava, lentamente, alguns nomes que me eram caros. Embora o vento se encarregasse de dissipá-los, eu acrescentava outro e outro ainda, riscando com minha voz o silêncio do meio-dia.
- Francisco, Lisa, Lurdes, Antônio, Maria, Augusto, Ângelo, Dolores, Lúcia, Matias, Laura, Gabriel...
De todos os lados, incluído o vazio do precipício, a natureza continuava indiferente. Mas essa indiferença era combustível para minha alegria.
Publicado na Gazeta do Povo em 1999