terça-feira, 5 de abril de 2011

Que saudade de Hilda Hilst!

         
         Há algum tempo a crônica deixou de ser um biscoito fino para se tornar um desses enjoativos biscoitos recheados com baunilha ou chocolate, que agradam tanto às crianças. Quem está cansado da lenga-lenga sobre nada de Raquel de Queirós e João Ubaldo Ribeiro, quem não agüenta mais a crônica como tema de si mesma, quem se via obrigado a enfrentar um banquete para saciar a fome miúda e fora de hora, prepare-se para degustar as guloseimas e os quitutes mais deliciosos do cardápio brasileiro.
         Saiu há mais de dez anos, pela Nankin Editorial, o livro Cascos & Carícias, de Hilda Hilst (reeditado pela Globo, em 2007, com o acréscimo de  novos textos), reunindo crônicas publicadas originalmente no jornal Correio Popular de Campinas, entre 1992 e 1995. Antes mesmo de abrir o livro, somos fisgados pela capa, que reproduz o retrato da artista quando jovem, bela e provocadora. A repetição do mesmo rosto, em preto e branco, segundo cortes sempre diferentes, torna contagioso o sorriso dos lábios e dos olhos, maroto como o gesto obsceno feito com a mão direita.
         Em contraste com o tom aparvalhado a que se viu reduzido o gênero que ganhou maioridade na mão de um time de primeira - formado entre outros por Manuel Bandeira, Paulo Mendes Campos, Vinícius de Moraes, Rubem Braga e Drummond -, o tom das crônicas de Hilda Hilst é surpreendentemente debochado, indignado, agressivo às vezes. Embora pertençam ao mesmo universo de sua ficção, especialmente a partir de O Caderno Rosa de Lory Lambi, elas esbanjam uma irreverência e uma ludicidade que ultrapassa os limites já por natureza generosos do gênero.
         Mas nem só de cascos é feita a crônica desta poeta, dramaturga e ficcionista que estreou em 1950, com o livro de poemas Presságio. Com mais de 30 títulos publicados em diversos idiomas, ela conseguiu unir com uma lucidez particularíssima duas pulsões humanas que raramente andam juntas: a obscenidade e o lirismo. Mais exatamente ela denuncia uma união indesejada, mas inevitável, entre o obsceno e o lírico, como se dissesse que cascos e carícias fazem parte a mesma natureza humana.
         Um dos exemplos mais bem humorados de sua irreverência libidinosa: Bem, agora quero lhes contar do meu filho. Tem 40 anos. Casado. Sua mulher é tolinha, dessas que falam sem parar, sempre imbecilidades. Leu algum que discorreu sobre a importância de “agilizar o conceito fala”, de extravasar. Sua visista era um inferno, eu colocava meu xale acastanhado e cantava baixinho, só para ela, uma canção muito engraçada dos meus tempos de faculdade: “cumé que é, meu capim barba de bode, / faz tempo que nóis num mete / faz tempo que nóis num fode...” Ela se arrepiava inteira. Dizia para meu filho: Leocádio, sua mãe está louca. Como é que você pode deixá-la aqui sozinha quando ela deveria estar naqueles belos lugares onde as velhinhas bordam, cantam canções de ninar, fritam bolinhos...  
         Freqüentemente seu humor incorpora o sotaque caipira típico do interior de São Paulo, sotaque que na maioria das vezes é ridicularizado na escola e nunca chega às páginas dos jornais. Um bom exemplo do uso dessa modalidade da língua é a crônica Tô Só: Vamo brincá de ficá bestando e fazê um cafuné no outro e sonhá que a gente enricô e fomos todos morar nos Alpes Suíços e tamo lá só enchando a cara e só zoiando? Vamo brincá que o Brasil deu certo e que todo mundo tá mijando a céu aberto, num festival de povão e dotô? Que termina assim: Vamo brincá de autista? Que é isso de se fechá no mundão da gente e nunca mais ser cronista? Bom-dia leitor. Tô brincando de ilha.
         Quando faz referência à crônica é para criticar o lugar-comum do gênero: Uma das coisas que mais me chateiam nisso de escrever crônicas é a quase obrigação de ser sempre pra cima, vivaz, alegrinha, ou então estar sempre em dia, na crista, notícias cintilantes...Ser sempre interessante como se todos fossem inteligentíssimos, profundos, finos, cultos, delicados... Nem alegrinha nem na crista. A essas duas solicitações ela contrapõe um humor debochado e uma crítica mordaz, principalmente quando se refere à realidade social e política do país; ou desaponta o leitor - e os editores - recheando os textos com poemas seus, como os três belos poemas de Alcoólicas, dedicados ao também poeta e cronista Jamil Snege.
         O que Hilda Hilst faz é subverter o conceito comum de crônica, sem no entanto desprezar o leitor de jornal. Quem tem uma intenção tão reta e feroz, embora subversiva, não tolera que se perca de vista o leitor. Em última instância é ele quem a autora procura subverter, com uma espécie de catecismo às avessas. A poesia, e também o sexo, seriam duas formas de encher de beleza e de justa ferocidade o coração do outro, do outro que é você leitor.
Embora suas crônicas mantenham o viço mesmo publicadas em livro, é inevitável reconhecer que o espanto e o gozo seriam ainda maiores se abríssemos o jornal de Campinas, por exemplo no domingo, dia 26 de fevereiro de 1995: Gente... que coisa! o cara colocando a camisinha na banana! E que música mais chinfrim! Não acredito que nestes nossos tempos epidêmicos de Aids e Ebola nenhum comunicador tenha encontrado uma fórmula sóbria e eficaz para alertar o povão sobre o perigo das relações sexuais sem o uso de preservativos! Vocês acham que lá nos cafundós (que é o Brasil inteiro) seo Mané vai entender o que estão querendo dizer em meio àquela suarenta de traseiros e tetas, e todos rebolando frenéticos num frenesi dementado e patético? O que vai acontecer com essa estória de banana é o seguinte:
         ô seo Mané, já comprô as bananas pras camisinhas?
         já, seu Jucão.
         põe no cacho inteiro, viu? Assim a gente pode metê pra valê.


         Publicado originalmente no jornal Gazeta do Povo

segunda-feira, 4 de abril de 2011

dor intensa

Esse painel de cimento faz parte da Trilogia da Dor: a dor pressentida, a dor intensa e a dor como um pássaro. A figura é sempre a mesma, mudam o contexto, as cores, o movimento do braço direito. Eles correspondem aos três movimentos da dor, quando ela apenas se faz anunciar, quando se instala definitivamente e quando abre as asas para ir-se.


sexta-feira, 1 de abril de 2011

Majik Mahgid, a história de um rosto

Majik Mahgid, a história de um rosto é o esboço de um livro de recortes feito originalmente sobre um livro de partituras musicais. Tem por tema um rosto recortado sobre 90 folhas coloridas, num total de 180 páginas, no formato 33x23,5cm.

Da primeira à última folha, esse rosto vai se desfolhando em quatro movimentos maiores, como num andamento sinfônico, correspondentes a quatro facetas, que ora surgem entre fendas e retângulos, ora se desfazem fragmento a fragmento, até se abstratizarem e assumirem nova expressão.

A idéia me veio de um sonho, lá em setembro de 2003, como tantas vezes antes. Acordei com o título e o que viriam a ser estas imagens rondando na cabeça. Mostro aqui 3 das 180 páginas.




quarta-feira, 30 de março de 2011

Óscar Hahn 4

Passei os primeiros dias do ano no Chile, com minha namorada. Na livraria Qué Leo, de Santiago, na sessão de poesia, topei com Óscar Hahn, poeta chileno nascido em 1938, em Iquique. Hesitei, o preço era salgado. Mas acabei trazendo o Archivo expiatorio, Poesías completas (1961-2009).

Ainda entre as prateleiras, de pé, folheando o livro, procurava ouvir com atenção o que aquela voz me soprava. Tenho uma dificuldade enorme em ler poesia em lugar público, frequentemente não entendo nada. Mas alguns fragmentos me diziam que ali havia uma mina d'água.

Só mais tarde, em casa, no silêncio das madrugadas, compreendi a dimensão do poeta que me fisgara na livraria. Em tudo oposto a Neruda: conciso, reflexivo, muitas vezes sobrenatural ou surrealista, nunca grandiloquente, verdadeiro como uma pequena concha, trazida pelo mar aberto. Não um falso Midas, mas Sísifo como todos nós.

Traduzo aqui, como exercício, novo poema de Óscar Hahn, do livro En un abrir y cerrar de ojos.


FALCÕES

Os falcões noturnos
com grandes olhos negros

te enxergam, mas não os vês
te espreitam, mas não o sabes

até que um dia desses
acordas na cama e vês

dentro de tua cabeça
os falcões voando, sem asas


HALCONES

Los halcones de la noche
con ojos negros y grandes

te miran y no los ves
te espían y no lo sabes

hasta que un día cualquiera
te despiertas en la cama

y adentro de tu cabeza
los ves volando sin alas

Tradução de Carlos Dala Stella

domingo, 27 de março de 2011

Óscar Hahn 3

Do livro En un abrir y cerrar de ojos (2006-2007), do chileno sobre quem Mario Vargas Lhosa disse "a obra de Óscar Hahn é maravilhosa e verdadeiramente original", traduzo novo poema.


Torres Gêmeas


Explodiste teu avião contra minha torre
e eu explodi o meu contra a tua

É isso o que acabamos sendo:
torres gêmeas que desabaram
torres que o fogo reduziu a escombros

Nenhum monumento se erguerá
em memória de nosso amor:

sobre o terreno baldio
apenas uma nuvem de pó



Torres Gemelas


Estrellaste tu avión contra mi torre
y yo mi avión contra la tuya

Eso fuimos los dos:
torres gemelas que se desplomaron
torres en llamas que se hicieron escombros

Y ni siquiera habrá un monumento
a la memoria de nuestro amor:

solamente un terreno baldío
y una nube de polvo



tradução: Carlos Dala Stella

sábado, 26 de março de 2011

Menino


Esse menino primeiro foi um grafismo com nanquim. Depois uma série de gravuras em serigrafia. Depois ainda um menino de cimento soldado numa placa de vidro. E finalmente chegou a esse painel pintato com acrílica e escrito com cimento. Foi quando nasceu meu primeiro filho. Lá pelos três anos, lembro de vê-lo, de costas, desenhando peixes nos vidros da janela embaçada. Escrevi isso no painel, em espelho. Escrevi no cimento, como fiz depois, com o nascimento de meu segundo filho. Acho que era um poema que não vingou.

Ficaram esses fragmentos no cimento. Mas o prazer ensolarado de vê-lo está lá, de braços abertos pra melhor sentir o ar fresco do mundo amanhecendo.
Pouco importa se o menino desenha nos vidros da janela ou da porta, se desenha peixes ou pombas, se tem dois ou três anos. Pouco importa se o menino-grafismo veio antes do menino que desenha na sala, com o dedo, soprando no vidro seu bafo quente. O que importa é que o tempo funde tudo num único sentimento. E que esse sentimento às vezes se manifesta, na maioria das vezes não. Faltam palavras, falta sopro de vida ao cimento.
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sexta-feira, 25 de março de 2011

Caderno de Ateliê


Barcelona de Gaudí, Curitiba de Poty

Fiquei surpreso quando li que de cada dez pessoas que visitam Barcelona, oito o fazem por causa de Antoni Gaudí. Não que o genial arquiteto catalão não mereça a honra de tantas visitas. Seu trabalho é a prova de que o sonho faz parte de nossas necessidades vitais, como comer, beber, dormir, amar, mesmo que às vezes ele se aproxime perigosamente do pesadelo. E o homem que tudo podia a partir de simples pedras ou fragmentos de azulejos dilatou como poucos os limites da necessidade humana de sonhar em direção a uma espécie de fantasmagoria em vários aspectos infantil.

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Fiquei surpreso por constatar como figuras como essa mais do que emprestar seus traços à fisionomia de uma cidade, no limite passam a substituí-la. Para oito em dez turistas, embora continue dona de um corpo pleno de atributos particulares, Barcelona reduz-se - ou amplia-se, o que é ainda mais surpreendente - às obras arquitetônicas de Gaudí. Daí a uma imagem subjetiva e generalizante da cidade, sob o impacto dessa personalidade catalã originalíssima, vai apenas um passo.

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Se de um lado Barcelona parece extremamente generosa, porque permite que novos traços vão sendo incorporados à sua identidade sempre em expansão, por outro é preciso lembrar que só é possível tomar parte no corpo urbano à força de uma reivindicação poderosíssima. Não conta muito para essa conquista o poder instituído nomear uma praça, uma rua ou uma escola de engenharia com o nome de A. Gaudí. Mais do que qualquer dessas merecidas homenagens, suas obras é que conquistaram o direito de ampliar o imaginário da cidade, e fizeram isso à força, desprezando, por exemplo, o esquadrinhamento cartesiano das vias que circundam a Sagrada Famíla, o que ressalta ainda mais sua irregularidade quase monstruosa. Mas principalmente se batendo contra o projeto de arejamento que está na origem da arquitetura moderna.

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É certo, porém, que Barcelona aprendeu bem a lição, como provam o inquietante confronto entre o edifício do Colégio dos Engenheiros da Catalunha, de um lado da rua, e a Catedral Gótica, do outro, símbolo do confronto, mas também do convívio, entre a arquitetura gótica e a moderna naquela cidade.

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Embora Oscar Niemeyer seja indiscutivelmente responsável por alguns traços fundamentais da fisionomia do Brasil, especialmente no exterior, seu nome está mais ligado à Brasília do que a qualquer outra cidade brasileira, incluídas aí Belo Horizonte, São Paulo e Rio de Janeiro.

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Curitiba, que não possui um fisionomia arquitetônica particular, e que aprendeu a se contentar com os arremedos do mestre carioca, tem que procurar em outras áreas aqueles nomes que lhe emprestam identidade. Poty é sem dúvida um deles. Se é verdade que os turistas vêm a Curitiba atrás da Eldorado, em que a qualidade de vida seria superior à de outras cidades brasileiras, atraídos por algumas soluções urbanísticas originais e por uma estratégia de marketing eficaz, também é verdade que em algum momento da visita eles se deparam com o nome de Poty Lazzaroto, especialmente o muralista. E nesse sentido ele passa a fazer parte do imaginário da cidade.

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Mas a estratégia do artista paranaense parece ser bem menos bélica, ou reivindicativa; ele antes devide com o poder uma imagem que o Estado possui de si. O Poty baiano, próximo de Caribé, ambos atentos à cultura negra, o Poty sertanejo, que torna ainda mais real o grande sertão de Guimarães Rosa, o Poty indigenista, que revela segredos do dia a dia dos índios brasileiros, o Poty carioca, que dá traço aos personagens de Machado de Assis, o Poty interessado na cultura maia e asteca, esse Poty diverso se afunila, em Curitiba, num Poty unívoco, narrador convencional da formação histórica do Paraná.

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O muralista antes empresta seu nome à cidade do que lhe impõe uma identidade particular, identidade que inegavelmente ele possui, e que dá vida a grande parte de sua obra, especialmente à porção gráfica dela. Mas que à força de se subordinar a essa insana necessidade local de impor uma visão paranista à cidade, ocupando todos os espaços de seu imaginário, acabou se tornando redundante, degradando inclusive a qualidade de seu traço.

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À medida que o apuro técnico no manejo do isopor - material utilizado como fôrma para a fundição do concreto - vai se aprimorando, é visível que a concepção dos painéis, com seus pequenos núcleos temáticos, vai se repetindo à exaustão. Mesmo os painéis de cerâmica sofrem deste mal, como o duplo agravante de que agora o artista simula o uso da cor e perde a vitalidade de seu traço. É difícil, por exemplo, identificar a personalíssima nervura do traço de Poty no tubo de ligeirinho do painel da travessa Nestor de Castro, fundos da Catedral Metropolitana. Quanto ao uso recente da cor, basta colocar lado a lado qualquer gravura em preto e branco e um desenho da última safra, “colorido”. A cor, em seu caso, abranda a natureza rude do traço, tirando do desenho sua feição de estrutura armada, de finos fios retorcidos, que lhe davam personalidade e um poder impressivo incomum.

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A Curitiba de Poty não possui a diversidade genial da obra do artista. Infelizmente, o empenho com que se subordina, e portando se reduz, o estético ao político, no Estado, ao mesmo tempo que deu visibilidade local ao artista, não fez senão reduzi-lo à figura do ilustrador oficial de alguns momentos históricos do Paraná. Ao contrário de Gaudí, a obra de Poty cresce em diversidade e beleza justamente quando se vê desvinculada da cidade natal.

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Texto publicado na Gazeta do Povo

quinta-feira, 24 de março de 2011

Óscar Hahn 2

Traduzo aqui mais 1 poema do chileno Óscar Hahn, dando continuidade ao que inciei na postagem de 15 de março. Ao que eu saiba, nenhum de seus livros foi ainda traduzido para o português. Arte Poética fecha o livro Apariciones profanas (2002-2005). Para quem tiver curiosidade, esse link dá acesso ao livro completo.
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ARTE POÉTICA

A puta que pariu da minha poesia
a frígida a virgem a tesuda
que me transforma num chifrudo
e fecha as pernas com teimosia

A que me nega o que eu queria:
a flor de sua beleza irreverente
sua corola que lateja noite e dia
afogueada em orvalho ardente

A que me engana com um ladino
com Rilke com Pessoa com Vallejo
a que joga nos astros meu destino

A que no espelho me maquia
a beata a agnóstica a sacrílega
a puta que pariu da minha poesia


ARTE POÉTICA


La puta madre de mi poesía
la frígida la virgen la caliente
la que me pone cuernos en la frente
la que aprieta los muslos a porfía

y no me suelta lo que yo querría:
la flor de su hermosura irreverente
su corola que late noche y día
envuelta en llamas y en rocío ardiente

La que me engaña con cualquier vecino
con Rilke con Pessoa con Vallejo
la que traza en los astros mi destino

La beata la agnóstica la impía
la que pinta mis labios en su espejo
la puta madre de mi poesía


tradução: Carlos Dala Stella
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quarta-feira, 23 de março de 2011

terça-feira, 22 de março de 2011

Figura japonesa com pinheiros

(clique na imagem para ampliá-la)
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figura japonesa com pinheiros
cimento branco estrutural
100x50cm
R$ 3.200,00
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rio abaixo

r.

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em meio à correnteza

murmurantes florações de pedra

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nó de raízes na barranca

a ponta dos dedos n’água

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chifres lunares afloram à superfície

uma manada atravessa o vau

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no céu uma garça branca

gibóia no galho da secóia

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entre peixes e seixos

a líquida membrana do sol

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silêncio no topo do arvoredo

a elocução do remo rio abaixo

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do livro O caçador de vaga-lumes (1998)


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domingo, 20 de março de 2011

Abajur, da série Sombras



Nas Nuvens, da série Sombras

(clique na imagem para ampliá-la)
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Redes Sociais


A hesitação, a ponderação e a delicadeza é que nos tornam mais humanos, não a redução vertiginosa das distâncias graças à tecnificação. A proximidade virtual, através da internet e das redes sociais, mais afasta do que une, porque reforça nossa interioridade, como se ela não fosse feita de fraturas, ao invés de expô-la à intempérie e ao amor do outro - o outro feito de carne, ossos e sonhos.

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quarta-feira, 16 de março de 2011

terça-feira, 15 de março de 2011

Óscar Hahn

Passei os primeiros dias do ano no Chile, com minha namorada. Na livraria Qué Leo, de Santiago, na sessão de poesia, topei com Óscar Hahn, poeta chileno nascido em 1938, em Iquique. Hesitei, o preço era salgado. Mas acabei trazendo o Archivo expiatorio, Poesías completas (1961-2009).
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Ainda entre as prateleiras, de pé, folheando o livro, procurava ouvir com atenção o que aquela voz me soprava. Tenho uma dificuldade enorme em ler poesia em lugar público, frequentemente não entendo nada. Mas alguns fragmentos me diziam que ali havia uma mina d'água.
.e
Só mais tarde, em casa, no silêncio das madrugadas, compreendi a dimensão do poeta que me fisgara na livraria. Em tudo oposto a Neruda: conciso, reflexivo, muitas vezes sobrenatural ou surrealista, nunca grandiloquente, verdadeiro como uma pequena concha, trazida pelo mar aberto. Não um falso Midas, mas Sísifo como todos nós.
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Traduzo aqui, como exercício, um de seus poemas, retirado do livro Apariciones Profanas (2002-2005).
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Violino
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Essa árvore
guarda dentro um violino
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Não esculpido ainda, mas nela contido
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A espera do dia da ressurreição
dentro da árvore
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Disse o senhor Stradivarius:
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Preciso salvar esse violino
tirar a casca que o aprisiona
e deixá-lo respirar ao ar livre
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Quero ouvi-lo cantar para mim
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Esse violino
guarda dentro uma árvore
guarda flores que ouvem a música suave
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e guarda passarinhos
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Violín
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Ese árbol
tiene um violín adentro
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No fue tallado aún pero está adentro
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Espera el día de la resurrección
árbol adentro
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Dijo el señor Stradivarius:
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Tengo que rescatar a ese violín
tengo que quitarle la corteza que lo aprisiona
y verlo respirar al aire libre
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Tengo que oírlo cantar para mí
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Ese violín
tiene um árbol adentro
tiene flores que escuchan la música callada
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Tiene pájaros
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sábado, 12 de março de 2011

A casa ao pé do penhasco


O bom de morar entre as pedras, quando chove, é sentir o vapor mineral que sobe depois dos primeiros pingos e desaparece quando as rochas estão completamente molhadas.

O barulho da chuva consola. Mas é triste ver os pingos explodindo nas pedras e a água escorrendo pelos veios vermelhos, tão longe da terra.


Tao-chi (1641-1717): A Man in a House beneath a Cliff

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A única música que se ouve é o vento, mas nessa época do ano ele apenas sussurra durante o dia e se cala à noite. Nem parece o vento cortante do inverno, que assobia semanas a fio, limando os nervos.

Às vezes grito palavrões, de pé na varanda. Ninguém responde. Um desconhecido que errasse por esses lados na certa ia espalhar que um louco mora no pé do penhasco. Um outro, ouvindo contar essa história, acrescentaria que há muitos anos um homem abandonara seu filho no alto de um penhasco, afogara a mulher e fugira para os braços da amante, na cidade vizinha. Outro ainda ajuntaria que o menino crescera falando com as pedras. E que, fato inédito, as pedras não só compreendiam o que ele dizia, como o consolavam com palavras de afeto.
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***.

Nos fundos da casa de meus pais, caminhando descalço sobre as pedras do pequeno rio, descobri ainda menino como os pés dependem dos olhos.

Embora eu conseguisse chegar antes que meus irmãos na outra margem, pulando sobre as pedras, demorei muito até aprender a manter o equilíbrio numa única perna, com os olhos fechados, sobre uma pedra escolhida ao acaso. Eu acreditava que para manter o equilíbrio era preciso esquecer os gritos, assim como o barulho da água.

Quantas vezes não fiquei de pé, depois que vim morar aqui, os olhos fechados, uma perna dobrada, sobre essas pedras cor-de-rosas, ridículo e imóvel. Os ouvidos bem abertos, para que o silêncio passasse por mim como o vento pelos cômodos abertos de minha casa.
***
Ontem, tinha apenas escurecido, eu estava deitado sem fazer nada, flutuando entre fragmentos de idéias, desejos, lembranças. Uma cigarra continuava cantando apesar do sol ter se posto há pelo menos uma hora. Dormi profundamente, embora não costume dormir tão cedo. Sonhei com uma mulher que gritava do meio das pedras para a casa:

- O penhasco começa ou termina aqui?
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Subitamente confuso, sem conseguir resolver essa equação que me parecia um enigma terrível, não tive discernimento senão para dizer algumas bobagens como é preciso subir muito ainda até o topo, ou muitos já passaram por aqui, alguns nunca voltaram.

A mulher, visivelmente desapontada, virou as costas e desapareceu atrás de uma rocha mais alta. No resto do sonho, essa espécie de eternidade que todos conhecemos, eu fazia cálculos e mais cálculos debruçado sobre uma folha tão grande como um mapa, mas não conseguia chegar a um resultado convincente. Até que rascunhei dois versos no meio daquele universo caótico de traços e números. E tive certeza de ter encontrado a chave.
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Acordado, no meio da noite escura, os dois versos ainda estavam frescos na memória, os mesmos dois versos que agora, à luz do dia, ditos em voz alta, não significam nada.

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Todas as manhãs estendo essa tira preta de papel à minha frente e penso: eis a morte. Assim, sobre o assoalho, o preto parece a delimitação de um espaço a ser preenchido. Nada mais enganoso. Resisto como posso à tentação de espalmar as mãos sobre ele. Seria belo, eu sei, colocar sobre suas extremidades algumas dessas pedras espalhadas pela casa, de diferentes formas e tamanhos. Ou escrever uma única palavra, qualquer uma, sobre sua superfície aveludada, pressionando as fibras contra as tábuas do chão. Belo, talvez, mas falso.

Depois de algum tempo torno a enrolar a tira preta, com cuidado para não deixar nenhuma marca no papel, e guardo o rolo dentro de um vaso de boca estreita, sobre a mesa.

Nunca me ocorreu enfeitar o vaso com uma flor, até a primavera do ano passado, quando milhares de florzinhas silvestres desabrocharam nas frinchas do penhasco. O rolo negro, então, deu lugar por alguns dias ao amarelo, ao branco e ao lilás aquarelados dessas espécies vulgares que parecem brotar das pedras e que não vivem mais do que um par de dias.

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Há pedras tão moles e farelentas que lembram o talco. Outras mais duras do que o ferro. A unidade absoluta de ambas, porém, não esconde sua natureza composta. Foi mais ou menos isso que meu professor de ciências escreveu no quadro há mais de trinta anos, numa de suas primeiras aulas, nos obrigando a copiar em silêncio, como se por trás daquelas palavras houvesse um significado oculto, que ele naturalmente conhecia e ao qual nunca teríamos acesso.
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Aquele platô à nossa esquerda, logo abaixo - ele na certa acrescentaria, caso estivesse aqui - por mais coeso que pareça é a soma de milhões de fragmentos. O segredo das pedras está em dar integridade à dispersão...
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Mas é bem capaz daquele desgraçado já ter morrido e eu estar evocando um fantasma.

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Você está vendo aquela pedra maior, depois do caminho, ao lado de outras duas que parecem monges? Alguém que nos olhasse trepado nela, além da casa, devorada pelo paredão de pedra, veria montanhas íngremes ao fundo, e à direita o vazio.

Várias vezes apoiei os pés na espinha dorsal daquela pedra, as vértebras irregulares descendo de ambos os lados, como as costas de um animal pre-histórico. Pois ouça bem o que vou lhe dizer, minha sombra. Caso eu saltasse para o vazio, nós nos separaríamos por alguns instantes, mas seríamos obrigados a nos reencontrar pela última vez, lá embaixo. Portanto, não me tente com esse seu debruçar-se para o desfiladeiro.

***

A pedra calcária incrustada no dorso desta gigantesca pedra ferro parece um lírio. Macia ao toque da mão, tê-la como parte de uma ameaça constante sobre o telhado não me assusta.

Nas noites em que o silêncio é absoluto e o medo de morrer sozinho morde meus ossos, é no branco leitoso dessa pedra-flor que procuro descanso. Como um cego, tateio no escuro até o extremo da varanda. Esticando o braço para fora, toco a pedra fria. Então subo com a mão até sentir a maciez da cal na ponta dos dedos.

O súbito contraste entre a dureza da pedra e aquele reduto de fragilidade me devolve a calma. O silêncio volta a emitir seus resmungos de costume e o medo, o medo finge que dorme, sob as pilastras da casa.

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Esta manhã, mal abri os olhos, uma alegria súbita me arrancou da cama. Como se tivesse sido esfaqueado, o golpe me devolveu de uma só vez todas as alegrias da infância e os desejos da maturidade.

Corri para fora de casa e comecei a escalar o penhasco pela encosta leste, parcialmente iluminada pelo sol. A umidade do orvalho noturno, sobre as rochas, gelava a sola dos pés. Uma brisa suave, à medida que subia, refrescava os olhos. Mas esse frescor só fazia despertar ainda mais meus sentidos.

Na metade da subida, pouco antes das duas pedras gêmeas, o calor tênue nas costas, me virei de frente para o sol. Com os olhos semi-abertos, contra a horizontalidade dos raios, pude ver a encosta deste e a dos outros penhascos se encontrando lá embaixo, no vale ainda coberto ...

No final da manhã cheguei ao topo. Minha sombra não era mais do que uma mancha irregular ao redor dos pés. Tirei a roupa e, nu, abri os braços, girando ao redor de mim mesmo, à medida que gritava, lentamente, alguns nomes que me eram caros. Embora o vento se encarregasse de dissipá-los, eu acrescentava outro e outro ainda, riscando com minha voz o silêncio do meio-dia.

- Francisco, Lisa, Lurdes, Antônio, Maria, Augusto, Ângelo, Dolores, Lúcia, Matias, Laura, Gabriel...

De todos os lados, incluído o vazio do precipício, a natureza continuava indiferente. Mas essa indiferença era combustível para minha alegria.

Publicado na Gazeta do Povo em 1999

sexta-feira, 11 de março de 2011

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Leio cada vez menos

cada vez mais devagar.

Leio como caminho,

lentamente.

Uma larva atravessando a floresta negra das letras

na intimidade úmida da terra.

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do livro O gato sem nome

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